Uma valsa obscura entre sombras flamencas

Ainda que seja noite é um dos mais maduros trabalhos que a temporada de 2018 trouxe à cena e não por acaso, uma vez que é resultado da trajetória desafiadora e de excelência que a Cia Silvia Canarim vem imprimindo em sua pesquisa da dança flamenca com vertente contemporânea. Essas qualidades e atributos já estavam presente em A Casa (2007), primorosa releitura da peça teatral A Casa de Bernarda Alba de Federico García Lorca.  A Cia chega agora naquela maturidade da dedicação de Silvia Canarim a uma experimentação continuada, consistente e séria que permite a economia e torna a obra substantiva, coesa, forte e ao mesmo tempo enigmática, como a poesia de Garcia Lorca.

A criação tem como ponto de partida o universo poético do cantaor espanhol Enrique Morente (1942-2010) que revolucionou sua arte. Em seus versos  atualiza um tempo sombrio que habita novamente nosso horizonte anunciando  a guerra, a morte e a injustiça social, revestida deuma tímida porém suficiente esperança na vida e suas paixões que nos movem. Enrique Morente A criação tem como ponto de partida o universo poético do cantaor espanhol Enrique Morente (1942-2010) que revolucionou sua arte. Em seus versos  atualiza um tempo sombrio que habita novamente nosso horizonte anunciando  a guerra, a morte e a injustiça social, revestidos de uma tímida, porém suficiente esperança na vida e suas paixões que nos movem.

A cena de abertura  coloca à nossa frente a figura imponente e inebriante de Iandra Cattani que faz do seu corpo a matéria que incorpora toda aridez e crueza das cordas da guitarra elétrica que ecoa. Seus braços, tronco e cabeça desarticulam em uma inusitada harmonia que se revela aos poucos em meio à escuridão. Como se desbravasse a atmosfera invisível, mas de uma densidade que vai sendo vencida por uma lúdica força. Como diz os versos: “Eu bem conheço a fonte que jorra e corre ainda que seja noite, essa eterna fonte parece ausente mas eu bem sei onde fica sua nascente”

Aos poucos, canto e baile se fazem lamento, dor e força que se impõe sobre um possível aniquilamento. As intervenções vocais que não se esgotam nas cantigas, mas em sons guturais, soluçados que se mesclam a sapateados enérgicos e precisos. Em cena quatro mulheres  que evocam esse universo, quase que ritualisticamente. Mulheres como a bailarina Paula Finn, talvez quem possa traduzir da melhor maneira o que o espetáculo promove. Seu peso suave e leve faz-se gravidade imponente, seus pequenos braços se prolongam, como se agarram-se o espaço em sua volta e o transmuta-se em pura poesia. É uma rara intérprete que mescla domínio e expressividade de uma forma singular e hipnótica, qualidades que já lhe conferiram o prêmio Açorianos de Melhor Bailarina.

Mas não é do individual que o espetáculo se faz, ele reverbera em cada encontro e desencontro com Michelle Richter, Iandra Cattani e Silvia Canarim. Um elenco que concentra invejável técnica e domínio num refinado jogo de esforços corporais, num complexo manejo de equilíbrio, num arrebatador mosaico de tensões e fluxos de movimentos, por momentos bizarros, por momentos  assustadores, por momentos de uma beleza que não encontra definição.

A direção de Carla Cassapo dá o tom firme à obra que conta com uma trilha sonora vigorosa e inventiva, figurinos que carregam um dramaturgia própria, e um desenho de luz irretocável e inspirador. Todos esses acertos  fizeram de Ainda Que Seja Noite  indicado em mais 7 do Prêmio Açorianos de Dança: Melhor Espetáculo, Direção, Coreografia, Trilha Sonora, Figurino, Produção e Destaque Flamenco.  Sendo vencedor do Prêmio Açorianos 2018 – Melhor Iluminação (Fabrício Simões).

Um espetáculo para ser visto e revisto pois se faz num somatório de momentos precisos,  bem concebidos, que nos arrebatam, como a cena final. Nela as bailarinas giram em torno de seu eixo, numa bailado rodopiante quase sem fim. Cada uma com um arranjo próprio, dona de seu tempo. Quando percebemos  estão juntas no centro do palco como criaturas abissais cuja beleza está perdida na profundeza sem luz, ao som da arrebatadora e doída canção Pequeño Vals Vienes que diz: ” Por el silencio oscuro de tu frente/Ay toma este vals/Este vals de te quiero siempre”.

Quando nos damos conta, atravessamos essa noite junto com elas. Uma noite de uma uma atmosfera densa que traduz  as angústias que parecem habitar em nós e aponta linhas de fuga em meio às essa escuridão que tenta se instaurar, mas que resiste com fachos de luz fugidios a iluminar recantos inesperados.

O espetáculo tem apresentações dia 7 e 8 de setembro no Teatro da Santa Casa, com participação luxuosa da cantora Vanessa Longoni, e e 18 e 17 de setembro , no Teatro Renascença, na programação do Festival Porto Alegre em Cena.

Ficha Técnica:
Concepção e Direção Coreográfica: Silvia Canarim
Direção Cênica: Carla Cassapo
Intérpretes Criadoras: Iandra Cattani, Michelle Richter, Paula Finn e Silvia Canarim.
Participação especial: Vanessa Longoni.
Trilha Sonora original: Marcelo Fornazier. Participação especial de Giovani Capeletti
Trilha Sonora Pesquisada: o Grupo
Preparação Vocal: Bruno Cardoso
Criação de luz: Fabrício Simões
Sonorização: Driko Oliveira
Figurino: Ana Medeiros (criação) e Naray Pereira (confecção)
Arte Gráfica: Michelle Richter
Produção: o Grupo

Fotos: Cris LIma

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