
Na tarde de ontem o domingo na tv aberta seguia na sua mesmice até que no programa Pop Star de Tv Globo entra a atriz Letícia Sabatella. E é anunciado que cantaria A Rã, de Caetano Veloso e João Donato. Já teria aí uma saborosa perturbação ao marasma da programação. E eis que a performance abre com trechos de Guimarães Rosa. O que sucedeu foi um momento de poesia e arte transbordante. Em uma versão que conseguia ser suave e arrebatada nas suas gradações, Letícia fez sua voz irmã de toda essa natureza e, portanto, de nós todos tão familiares. Letícia fez do canto e do gesto um ato de comunhão de vida. Foi um presente. Uma oferenda. Uma escolha refinada sem fazer escolhas fáceis nem concessões, mas tão perfeita e necessária num momento que falta tanta escuta, tanta sensibilidade e um bocado de saudável inteligência. Em nada pretensiosa, simples como a grama, a lama, a rã, a pedra, o corrregozinho.
Além disso, uma boa oportunidade de revelar o quão complexa e ambígua é a cultura televisiva. E o quão perigoso é a condenação apocalíptica das mídias. Por si só a tv ou a internet não banalizam apenas, ainda que muito o faça. Em que momento um escritor como Guimarães Rosa poderia ser escutado de forma tão generosa e cristalina de norte a sul desse país, por milhões de pessoas? Talvez nem todos atentos, mas muitos lembrando que “Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira flor”.
A performance de Letícia nos faz lembrar que a vida tem uma força e uma ordem tão sua que por mais que pareça ameaçada, cerceada, agredida, encontra formas que resistir, de se transformar, de se reinventar. Não importa o meio ou o que impera nele, inesperadamente algo brota e perturba e encanta e resplandece no meio do nada, da penúria, da aridez. Nossa alma, nosso coração e nossa mente não são capturados assim tão impunemente. Letícia nos lembra como Guimarães que o que pode parecer nada em meio ao sertão pode conter um universo. Como quando ela bota um universo de sons na garganta num misto de lamúrias, pios, cantos, gritos, protestos, revoada, rumor de cascata, cio. Obrigado Letícia por habitar esse lugar que tantos desprezam e renegam com tanta dignidade e de nos mostrar que é possível amanhecer nessa tarde de domingo. “Amanhecendo sim perto de mim/Perto da claridade da manhã/ A grama a lama tudo é minha irmã/A rama, o sapo, o salto de uma rã.”