
Lives, vídeo-teatro, espetáculos on line, festivais de dança na web e outros tantos formatos e nomes surgiram. Cenas, corpos, movimentos, danças, performances, dramaturgias, imagens, desejos, vontades, necessidades. Com a epidemia do COVID-19 e as políticas de isolamento, a cena midiatizada se impôs de vez como alternativa imperativa e trouxe uma avalanche de possibilidades ainda que não inéditas, mas que eram pouco utilizadas por muitos ou não utilizadas nessa intensidade e quantidade. Essa realidade trouxe demandas impactantes para as artes da cena num curto espaço de tempo até para serem assimiladas. Novas formas e novos meios de expressão e de recepção para as artes da cena, novos elementos para o consumo, novos cenários para vinculação e significação ganharam relevo. E a produção surgiu mesmo que seu devido entendimento esteja se dando ou que só vá se dar mais adiante, quando as urgências serenarem um pouco. Por isso, ao manter um blog sobre as artes da cena é inevitável tentar entender que novo cenário é esse. E para isso tem me ajudado um conceito que já me era caro na pesquisa de doutorado: a idéia de um ethos midiatizado de dança e que me serviu de ponto de partida pra pensar esse emergente ethos midiatizado da cena.
Esse impacto tecnológico e seus desdobramentos foram trazidos por inúmeros pesquisadores como por Muniz Sodré (2002) que acertadamente vai referir-se à midiatização como tecnocultura, uma “nova tecnologia perceptiva e mental” (Sodré, 2002, p.27), que reorganiza as possibilidades dos sujeitos se perceberem, perceberem o mundo e articularem suas relações. O autor postula que a midiatização é uma “tecnologia da sociabilidade”, com uma qualificação cultural própria. E esta qualificação é que parece importante compreender, entendendo de que maneira se dá esta “telerealização das relações humanas” (Sodré, 2002, p. 21). Um contexto que aponta para o fato de termos um novo “jeito” de ser e estar cenicamente de desenhando, constituído midiaticamente, que traz inúmeras implicações aos indivíduos, seja social, economica, afetiva, material, simbolicamente. Como tentar entender este novo “jeito” que a cena passa a se organizar com o distanciamento imposto?
Não é apenas a questão de utilização dos meios tecnológicos para gravar/transmitir, mas sim de que maneira esse modo tecnológico afeta quem faz e quem assiste a essa cena. Foi com este questionamento que comecei a refletir em relação a um ethos da cena que se configura midiaticamente envolvendo hábitos, condutas, regras, valores, cognições, conexões e desconexões. O ethos então entendido como a “forma organizativa das situações cotidianas” e “a consciência atuante e objetiva de um grupo social” (Sodré, 2002, p.45). Tal noção é relevante, pois incorpora à compreensão da problemática, as maneiras ou os modos de agir numa sociedade permeada pela mídia, ou seja, um ethos midiatizado. Ideia também presente nas proposições de Jesus Martín-Barbero (2002) que sinaliza para “novas formas de sensibilidade” com as quais passamos a enfrentar a “heterogeneidade simbólica e a inabarcabilidade da cidade”, tecendo novas formas de “juntar-se e excluir-se”. A internet passou a ser uma forma dessa possível reunião-aproximação para a partilha da cena e isso foi celebrado, ao mesmo tempo que nos demos conta que uma significativa parcela desse público não conta com esse recurso e está à margem desse circuito por não ter equipamentos compatíveis, pacotes de dados suficientes, wifi, 4G, canais fechados de televisão.
Nesta perspectiva, podemos entender como está se processando o redesenho das experiências cênicas atravessadas pela mídia. Redesenho que vem produzindo uma nova maneira de vincular-se, de reconhecer-se, de estranhar-se, de administrar-se e inclusive de se educar sensivelmente. A midiatização traduz um novo e diferenciado investimento sobre os indivíduos na contemporaneidade. Um investimento que envolve múltiplos vetores de uma complexa engenharia de forças.
Elas alteram a maneira de se experienciar o espaço e o tempo. O tempo e o espaço que constituem nossas rotinas, que dão sentido à vida social. Mudanças nestas categorias centrais da existência humana estabelecem uma nova cartografia e fluxo, que na pós-modernidade se caracteriza pela compressão espaço-temporal, como apontou Harvey (1993). Volatilidade, efemeridade, aceleração, mobilidade geográfica são alguns dos aspectos apontados pelo autor. Um tempo instantâneo e vertiginoso passa a ganhar relevo, um tempo simultâneo, assim como uma espacialidade que incorpora o trânsito contínuo, num grande grau de mobilidade, ao mesmo tempo em que acentua a multiplicidade de lugares possíveis, mesmo que no confinamento, salas, dormitórios, cozinhas, banheiros, sacadas, janelas passaram à condição de palco e picadeiro.
O que começou como uma curiosa e inusitada produção, contudo rapidamente se transformou num universo inflacionado e até angustiante. De uma hora pra outro foi ficando quase impossível acompanhar e mesmo tomar conhecimento da totalidade dessa produção, com iniciativas acontecendo num mesmo tempo em tantos suportes, canais, plataformas, acessíveis não só localmente, mas em escala global. Por outro lado, essa proliferação permite a possibilidade de serem vistas e revistas na hora que se quiser.
E haja fôlego pra dar conta de tanta e repentina mudança. As artes da cena, que tradicionalmente tinham a sua experiência pública vivenciada coletivamente nas ruas, nos palcos, nos salões de baile, nas salas de aula não contam com essa possibilidade. A praça pública, o palco e o salão de baile que já cabiam em uma tela plana de pequenas polegadas, seja a da televisão, do computador ou do celular, agora tem esses suportes como única alternativa de existência. Além disso, a experiência cênica precisa abdicar da experiência coletiva, do contato com os demais participantes. Ainda que ali se tenha centenas ou milhares por trás dos monitores acesos, essa presença é distante, por vezes até silenciosa como numa live que acompanhei na qual a cantora dizia: “agora vocês” e um silêncio assustador se seguia. Provavelmente alguns fãs reproduziram o refrão em casa, vai se saber, ou emojis tentavam expressar o que o corpo não podia traduzir efetivamente na sua presença.
Agora, um meio tecnológico é que está na frente do espectador anunciando, exibindo. Anunciando e exibindo dentro de condições de produção que envolvem especificidades técnicas e possibilitando – variadas condições de consumo – em diferentes espaços, sejam eles a sala, o quarto, a cozinha, a escola, o local trabalho. E com isso criando um novo e decisivo mercado virtual com produtos, preços e canais de pagamento. Não basta apenas produzir e difundir, há de se saber quanto cobrar e como cobrar, como ser patrocinado ou não, como monetizar. Um redimensionamento de oferta e preço, de oferta e consumo que exige também todo um aparato tecnológico e seu devido uso.
Enfim, nesse relativo pequeno tempo que tudo isso se consolidou, surgiram muitos resultados surpreendentes positiva e negativamente. E nesse sentido que me interessa seguir. De compreender, aqui do meu cantinho, que esse ethos midiatizado da cena não implica em apenas se curvar às tecnologias, gostando ou não, mas entender essa outra natureza da cena que se desenha. Que lógicas de produção de significados são esses? Quais seus limites e potencialidades? Que outros sensíveis promovem? De que ordem, para quem faz e para quem recebe? Essa produção que emerge reproduz, minimiza ou amplifica as desigualdades culturais-sociais que nos deparamos?
A intenção aqui não é esgotar o tema nem chegar a nenhuma conclusão apressada, mas partilhar percepções iniciais desse processo que pretendo ir publicando em pequenos textos que de alguma forma vem me ajudando “ler”, nem que provisoria e modestamente essa mudança que afeta toda produção cênica e quem tenta seguir acompanhando essa produção e seus sentidos. Sempre torcendo que isso que surge como imposição e necessidade possa se estabelecer, se possível, em alternativas efetivas-afetivas da cena seguir nos encantando, inquietando, provocando, atravessando e transformando. Alternativas para somar e não para substituir de vez.
HARVEY, David. A condição Pós-Moderna. Trad. Adail Sobral e Maria Estela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 1993.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Oficio de cartógrafo: travesías latinoamericanas de la comunicación en la cultura. Chile: Fondo de Cultura Económica, 2002.
SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis: Vozes, 2002.
TOMAZZONI, Airton. Lições de dança no baile da pós-modernidade – corpos (des)governados na mídia. Tese. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2009. �s`֭H
Muito legal Airton!!! Impossível não pensar nesse resistência que as artes se jogam, e a dança com toda a sua insistência… Agora conhecemos onde moram os bailarinos, os coreógrafos e os professores de dança através de suas lives, aulas no zoom, danças de apartemento, etc!!! Me chama atenção a possibilidade de trocas também que estão acontecendo entre diferentes cidades e lugares. muito bom o texto , adorei, seguimos!!!
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