Aulas on-line de dança: para se permitir outros (bons e necessários) fazeres

Com o começo da pandemia elas foram uma alternativa meio improvisada com cara de quebra galho. Professores e escolas começaram a fazer uso na sua maioria sem saber muito bem como usar as ferramentas disponíveis ou mesmo adaptar metodologias. Cada um fazendo o que era possível. E sim, vou repetir, porque algumas coisas só repetindo muitas vezes: não é a mesma coisa que a aula presencial. Se fosse, teríamos um grande problema de percepção e realidade. O fato é que as aulas on-line de dança passaram a ocupar o espaço e se estabelecer como alternativa efetiva. Aqui, então, busco tecer algumas considerações sobre o que afinal se ganhou com esse cenário, sem desconhecer as perdas. E isso não para celebrar apenas esse recurso, mas para sim desfazer alguns entendimentos equivocados, um tanto de preconceitos e poder pensar nas suas potencialidade já que suas fragilidades são facilmente detectadas e ficar se lamentando sem otimizar o que é possível em nada vai mudar o cenário. Então quem saber menos ranço?

Eu tive também resistência, devo admitir. E foi só gradualmente que fui me adaptando às aulas para o Grupo Experimental de Dança, encontrando um modo e um tom para estar diante da câmera, para estabelecer a relação com os participantes e saborear os recursos que essa experiência possibilitava. Achei inicialmente que meu limite seria de 30 minutos e atualmente as aulas chegam a durar duas horas ou mais. Achei que os alunos ficariam desinteressados e pelo contrário. Achei que não haveria alternativas pedagógicas para muitas atividades e elas foram surgindo, inclusive com uma participação e frequência tão ou mais efetivas que as aulas presenciais. E são aulas ‘teóricas” de história da dança, dança e cultura, filosofia da arte. Foi aos poucos que fui me desfrutando desse modo de aulas e transformando o que desconforto e implicância em um dos momentos mais esperados da semana. As aulas acontecem e já aderi aos comentários simultâneos no chat/bate-papo pelo zoom que vão fazendo uma espécie de hipertexto, completando o raciocínio e reflexão que vai sendo feita, que não interrompe o encadeamento da fala e nem se perdem à espera do término da mesma. Comentários que, por escrito, parecem chegar com menos receio e mais encorajamento, o que só tem tornado as aulas mais participativas e dinâmicas. E poderia somar aqui o incremento de suporte didático com o compartilhamento de tela e o impulsionamento à criação de novos recursos pedagógicos e um engajamento estimulante da turma nas tarefas propostas. Inclusive as aulas virtuais já aparecem como uma solução para suprir uma demanda antiga de oferta dessas aulas à noite, em horários para atender os alunos que trabalham durante o dia e que a falta de espaço sempre foi um entrave. Enfim muitos aspectos positivos a comemorar até agora.

Curioso com isso desde o começo do isolamento social e querendo ir além da minha experiência pessoal, parti para uma pesquisa que ganhou a parceria da colega e amiga Ilza do Canto e acabou abrangendo um universo de 108 educadores de dança de Porto Alegre em valiosas informações reunidas no ebook “Aulas on line: ensino de dança em Porto Alegre em tempos de isolamento social” disponibilizado para leitura em    https://issuu.com/centrodedanca/docs/aulas_on-line_final. Esse material permitiu começar a sistematizar as informações que indicam esse novo modelo de ensino de dança. A primeira delas é que as aulas se tornaram uma realidade pra quase totalidade dos educadores (99%) e vai seguir para a grande maioria (71%) depois que o isolamento vier a terminar. Ou seja, é indispensável nos debruçarmos sobre como nos qualificarmos para isso, identificar suas fragilidades, não para comparar com as aulas presenciais, mas para poder minimizar aquilo que ainda não funciona adequadamente ou da melhor forma, porque seguiremos com elas.

Começo então com umas das reclamações mais recorrentes: a de que as aulas on-line reduziram os valores de remuneração dos educadores de dança, pois reduziu o número de alunos. Isso com certeza. Agora, não há de se comparar esse cenário com o que se tinha. Isso é uma avaliação injusta e destorcida de entender a realidade que se estabelece. É claro que se passou a ter menos alunos que migraram de uma “modalidade” para outra. Contudo deve ser ressaltado que nesses tempos muitos não estariam fazendo aulas presenciais mesmo que liberadas, seja por temor da epidemia ou seja por falta condições financeiras. Então ter 30%, 40% ou 50% de alunos fazendo aulas on-line é um êxito imenso. E soma-se a isso que essa oferta foi meio espontânea, sem uma devida publicização e investimento de marketing para ganhar esses alunos. E olha que bacana, mesmo assim, no improviso, um grande percentual de educadores passou de ganhar aluno/as que não frequentavam as aulas presenciais. Então, as aulas on-line estão sendo um ganho e não uma perda de rendimento e aluno/as!

Outro dos mitos que também surgiram é de que as pessoas que fazem aulas on-line têm menos foco, porque estão em casa fazendo outras coisas e isso favoreceria a dispersão. Gente, quem já não deu aula presencial com os alunos apenas de corpo presente, sem prestar atenção, consultando o celular, conversando e quando surpreendidos com uma pergunta, não sabem do que se trata pois não estavam prestando atenção? Então, nesse quesito muda o ambiente de audiência, mas não significa mudança nem maior nem menor na efetividade da aula. Tem uma parcela que depende de quem ensina, uma parcela que depende da criação de estratégias para não favorecer isso e tem uma parcela que é de quem se coloca disponível a vivenciar efetivamente essa experiência. Não está exclusivamente no meio essa dispersão.

E essa infundada crítica denuncia outro aspecto que me chamou atenção: o de quanto estamos presos ao entendimento de que só podemos acompanhar uma aula com a bunda sentada na cadeira e quietos. Com todas as pesquisas e percepções da pedagogia nas últimas décadas ainda temos a dificuldade de aceitar que podemos aprender no sofá, na cama debaixo das cobertas, colocando a penela de feijão no fogo, descascando batatas, com o filho no colo, ou transitando com o celular pela casa. E mais do que isso, podemos aprender em movimento. E que paradoxo para se lidar com dança, haver a recusa ao movimento kkkk. E isso está incrustado na gente às vezes de maneira imperceptível. Inclusive em um dos encontros on-line um aluno falava e eu precisava ir até a cozinha e inicialmente achei que era uma desconsideração, mas venci essa censura. Fui e voltei prestando atenção e partilhei com a turma essa minha auto-censura. E o aluno admitiu que realmente quando levantei ele achou que eu não estava dando atenção para ele. Mas que também começou a repensar porque esse entendimento, se ao voltar seguimos numa produtiva reflexão. Então considero que a modalidade on-line traz à pauta essa importante questão: a do ensino em movimento, seja com o computador ou notebook ou com o celular na mão (que mais liberdade ainda oferece). Pode-se migrar de um espaço pra outro sem prejuízo necessariamente. Pode-se achar o local mais confortável/silencioso para determinado exercício, pode-se achar o local mais quentinho na manhã de inverno ou no mais ventilado quando dá calor, pode-se acomodar melhor em outro canto ou em outra sala ou ainda na sacada, no jardim ou no pátio e seguir aprendendo. Pode-se acompanhar um texto ou reflexão requebrando ou balançando as pernas ou rolando pelo tapete, não?

Mais um argumento facilmente levantado contra as aulas virtuais: a baixa tolerância de permanecer diante das pequenas telas. Essa é uma questão efetiva, que realmente pode cansar o olhar, mas a tolerância a ficar parado sentado durante duas ou três horas numa aula presencial ou mesmo ficar tentando acompanhar atentamente as sequências coreográficas de um professor está à mercê da tolerância que é singular, múltipla e contextual. Particularmente devo confessar que muito cochilei em aulas presenciais sejam téoricas ou mesmo práticas (mal conduzidas). E de novo cabe a muitos fatores, a quanto outras atividades frente às telas tem nos consumido e a regulação dos nosso tempos.

Agora um fator que tem sido apontado como positivamente relevante: a possibilidade da não exposição. De poder experimentar sem o temor de estar fazer errado, de não saber por onde começar, de permitir o seu proprio tempo e de só se dar a ver (abrir a câmera) e se dar voz (abrir o microfone) quando se sentir à vontade pra isso. E de novo aqui a ressalva de que não estou ignorando a importância de ver e poder orientar a condução dos exercício de aula. O que é importante identificar é que para muitos a alternativa de não estar em comparação imediata com os demais nesse seguro “anominato” pode ter benefícios didáticos para quem precisa superar a timidez e as cobranças e poder escolher o tempo de fazer e de se dar a ver.

Essas foram algumas das percepções que têm me chamado a atenção e que a pesquisa ajudou a enxergar com mais nitidez. Aspectos a serem elencados nesse novo panorama e que ilustro com depoimentos dos pontos positivos apontados pelos educadores que fizeram parte da pesquisa:

Economia com transporte. “Minhas alunas estão dançando todos os dias. A economia com deslocamento e a possibilidade de acessar aulas e alunos que estão muito distantes fisicamente.” Um rápido cálculo permite ver isso com mais clareza. Para ter acesso à internet às aulas gasta-se talvez R$ 20,00 ou R$ 30,00 reais por mês. Para fazer aulas três vezes por semana, necessitando pagar duas passagens de ônibus para ir e pra voltar se gastaria R$216,00. Mesmo que seja apenas uma passagem para ir e voltar, o total ao mês supera R$ 100,00, o que já se torna uma restrição a muitos. As aulas on-line podem ser uma alternativa muito mais econômica para muitos que precisam fazer do uso transporte público ou mesmo de aplicativos.

Praticidade. “Não perder horas de deslocamento no trânsito, e com ônibus que não passa, poder fazer refeições em casa” No trânsito caótico da metrópole, as aulas on-line permitem uma maior praticidade e ganho de tempo em dias que parecem cada vez mais curtos e insuficientes para darmos conta de nossas tarefas. Ganhar meia hora ou duas de deslocamento é bastante favorável na vida atribulada da maioria.

Abrangência de alcance. “Poder alcançar pessoas de outros estados ou regiões q não conseguiriam fazer presencial.” A limitação do espaço e a consequente disponibilidade de horário desse espaço era um empecilho a muitos participantes. Em uma cidade grande e num país continental e num ambiente global essa modalidade encurta distâncias e possibilidade o que a presencialidade impede. Aulas que dificilmente poderiam ser feitas por alguém na periferia passaram a ser possíveis e mesmo para profissionais que puderam passar a acessar aulas de outros cantos do Brasil e do mundo que aqui não chegavam.

Participação familiar/afetiva “Envolvimento que os pais estão tendo com as crianças .” Este tem sido um exemplo recorrente não só nas aulas on-line como em mostras e festivais. O de pais e mães engajados na viabilidade das aulas de filhos/as, posicionando o celular, conectando o zoom e outra plataforma, editando vídeos. A atividade de dança que era entre aluno/as professor/as acabou se expandindo para pais, mães, mas não só e também para esposas, maridos, companheiros/as, namorados, namoradas. Muitos outros sujeitos da rotina doméstica, privada, passaram a auxiliar ou mesmo acompanhar as aulas, tanto auxiliando no uso da tecnologia quanto despertados pelo interesse naquilo que está ali no quarto ou na sala de casa. Não é mais apenas sobre aquilo que o participante fala da aula, mas do que muitos passam também a acompanhar, a entender a se interessar, se envolver.

Inovação. “Desenvolvimento de um produto novo, algo que continuaremos a oferecer após este momento, utilização da tecnologia em outro nível de envolvimento”. A necessidade desse novo modelo promoveu uma reavaliação dos modelos e roteiros prontos de aulas. A possibilidade da reinvenção. A necessidade estava lá, os recursos e ferramentas também, mas o contexto do isolamento tornou imperativo e impulsionou a revisão de práticas de aula, da produção de materiais didáticos.

Autonomia de gestão. “Gosto muito da possibilidade de apreender a gestionar meu próprio trabalho e negócio com dança, ampliando assim meus recursos e capacidade de me colocar no mercado com maior segurança, autonomia e independência.” As aulas no ambiente virtual estão possibilitando que muitos profissionais se estabeleçam, mesmos em condições de abrir uma escola ou manter um espaço.

Ensino e aprendizagem envolvem processos complexos e o propósito aqui foi o de provocar a reflexão de como o ambiente virtual passa a promover mudanças significativas e importantes, sem mistificação nem celebrações apressadas. O desafio de perceber esse cenário e avaliá-lo pelo que é e pelo que oferece e não pelo que a gente gostaria que fosse. E no ebook citado estão lá, tanto os pontos positivos quanto os negativos elencados. Mas senti a necessidade de destacar os positivos, não só por um invencível otimismo sagitariano, mas porque temos uma cultura de valorizar o que não nos parece dar certo ou não nos agrada e de resistência a mudanças. Cada um pode gostar ou não do ensino da dança virtual, é legítimo e para algumas danças ser um desafio maior, como para dança de salão. Mas isso não implica em jogar fora todas as possibilidade importantes e cruciais que essa modalidade vem a oferecer. Sim seguem os riscos das aulas presenciais. com professores/as despreparados, desatualizados, falta de pagamento das mensalidades, condução inadequada e desinteressante de aula, espaços impróprios para a realização das aulas, entre outros fatores. Mas essas são questões que já acompanham o ensino dança e seguem mesmo como desafios constantes com ou sem a realidade virtual, infelizmente. Que possamos superar o gostar ou não gostar e enxergar as possibilidades que se descortinam e são muito bem-vindas.

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