frame do videodança Lunares
Essa constatação e indagações geradas têm ganho mais espaço num ano como esse de 2020 em que a produção audiovisual virou uma ou quase que exclusiva alternativa para muitos profissionais, grupos, companhias e coletivos de dança. E afinal o que isso significa? Homogeneização? Democracia? Diversidade? Globalização? Inovação? Mesmice? Saturação? Exclusão? Inclusão? Quantidade sem qualidade? Quantidades que desafiam as qualidades estabelecidas?
Provavelmente tudo isso e mais um pouco faz parte dessa realidade, o que exige que gradualmente, com o devido cuidado, sensibilidade a gente se debruce sobre essa produção e circulação de obras. Uma análise que exige muitos olhares e perspectivas de entendimento e, acima de tudo, que não pode ser exitosa com pudores e temores de tratar daquilo que não temos o devido conhecimento, daquilo que não sabemos como lidar. Então vou me permitir uma escrita fragmentária, inconclusiva, provavelmente mais reflexiva e indagatória, referente a alguns aspectos que vem aparecendo nesse contexto.
Essa semana essas questões ganharam relevo com um pertinente e lúcido painel de abertura do IMARP 2020 – Mostra Internacional de Dança – Imagens em Movimento – Vídeodança. Estava com Marcelo Cabrera e Tati Missel, pegando carona no Zoom, e acompanhei a conversa com Denise Matta, diretora da Mostra e os curadores Sarah Ferreira, José Villaça e Mariana Jaroslavsky. Uma das questões centrais colocada foi se teríamos uma perda da qualidade no meio de tanta quantidade de produções. E fiquei feliz quando as respostas trafegaram pela questão afirmando que cada experimentação estabelece sua propria qualidade. Senti até certo alívio, pois muitas vezes os eventos que fomentam a circulação da produção também acabam estabelecendo parâmetros de qualidade e até filtrando por esse parâmetro toda uma experimentação que precisa ser entendida na seu contexto, singularidade, contingência. E ainda, a conversa seguiu bem boa, inclusive assumindo que uma curadoria está sujeita ao momento, que aquilo que foi visto hoje com certo olhar pode ser visto diferente amanhã ou em quando estou mais informado/a, mais bem humorado/a, menos espinhoso/a, mais generoso/a. Bacana ver um evento se debruçando sobre seus proprios dilemas enfrentados e criados. Então, inspirado e grato por essas partilhas sigo:
# 1 – por um período percebemos sim uma preocupação dentro do circuito da videodança com uma padronização guiada por critérios de qualidade técnica (e não de dança muitas vezes, mas sim de parâmetros de edição, captação, finalização, etc) que foi nociva à diversidade e particularidade de criação e produção.
# 2 – me parece que estamos num momento como quando a dança passou a aceitar que todo gesto e todo corpo era dançante e poderia produzir uma qualidade artística que não resida na especialização técnica. Ao mesmo tempo que, se queremos pensar em inclusões de toda ordem, que tem estado na pauta do dia, é preciso sim pensar em como esse filtro que prima por uma qualidade técnica estabelecida ajuda ou atrapalha, ao ficar operando com parâmetros que impedem de perceber outras perspectivas de lidar com isso que chamamos de videodança para além da excelência de captação, edição e finalização.
# 3 – a ditadura do modelo ou padrão de qualidade, seja ele empresarial, seja ele o padrão globo de produção traz ganhos e perdas. E muitas vezes na esfera da experimentação isso pode ser nocivo. A arte pode operar de outras maneiras não?
# 4 – a estandardização, seja falando de vida, seja falando de arte é perigosa. E no universo da videodança muitas vezes me deparei com períodos de tendências que buscavam não identificar um momento, mas de normatizá-lo, de estabelecer uma ‘lei” do que é bom ou não é, de como pode e de ser feito.
# 5 – quais os riscos daquilo perfeitamente acabado que não diz nada, que só cumpre seus requisitos e parâmetros. E mais, é perfeitamente acabado para quem? Quem diz o que é “perfeitamente acabado” ou ainda quem diz o que é/está imperfeito?
# 6 -aquilo que cabe para o a narrativa clássica do cinema talvez não caiba na estética das criações no celular, ou caiba de outra forma; o que cabe no circuito de NY talvez não seja o que caiba na África multicultural; o que cabe para uma produtora profissional não é que cabe para um coletivo da periferia. E isso não significa exigir menos ou “passar a mão por cima”, mas sim permitir ver e reconhecer outras lógicas de fazer, produzir, criar.
# 7 – uma vez, como avaliador no Festival de Joinville, tive uma longa e produtiva discussão com outra avaliadora referente a um trabalho que segundo ela tinha uma ideia fantástica, melhor que todas, mas que os intérpretes não tinham excelência técnica. Então seria melhor um trabalho vazio que cumpre os requisitos de excelência técnica? Foi minha indagação.
# 8 – “pode tudo, mas não pode qualquer coisa”. Mas é sempre muito fácil, cômodo e tentador achar que “o qualquer coisa que não vale” é aquilo que pouco conhecemos, temos intimidade ou afinidade. isso não quer dizer que vale qualquer coisa, de qualquer jeito, mas que não venha antes um juízo que impede de ver a experimentação que nasce, os novos parâmetros que possam ser lançados, que até mesmo coloquem em xeque o que está posto.
# 9 – Que coisa boa essa profusão de criações, mesmo que eu, nem ninguém consiga dar conta de ver tudo e que no meio de tudo isso tenha muitas coisas duvidosas. Que bom quando ainda temos dúvidas e não certezas tão absolutas, não? e quando sim damos oportunidade de experimentar, tentar mesmo que pareça meio torno, enviesado, improvisado, bagunçado, trêmulo, desfocado e disforme. Que tenhamos o real interesse sobre o que está ali e não o que deveríamos ou gostaríamos que estivesse.
# 10 – em 2009 escrevi minha tese de doutorado “lições de dança no baile da pós-modernidade: corpos (des) governados na mídia” e essa noção de desgovernar me passou a ser valiosa. Pois tem um momento que assusta essa perda das rédeas de tudo, como se isso implicasse apenas um caos, numa falta mínima de controle, mas ao mesmo tempo é aí que nessa condição se permite que surjam e brotem o que não precisa de autorização e consentimento. Um carnaval de imagens dançantes no melhor sentido desse festejo dos corpos dispostos a propor outra ordem pras coisas. Sempre tem uma hora pra gente se permitir desaprender.
# 11 – era pra falar de videodança, mas acho que vale pra muito mais de arte e de vida.
# 12 – ( )