Nossa Broadway tupiniquim, para alegria de Mario de Andrade

Já relatei uma vez numa matéria na extinta Revista Aplauso o quanto a obra da coreógrafa Carlota Albuquerque foi referência para eu começar a pensar numa produção local de dança tão fascinante e instigante e ousar ser uma bailarino tardio e um encenador de dança. E foi com a obra Lautrec, fin du siécle lá de 1993. Assisti ao espetáculo e sai entusiasmado com o que se produzia aqui na nossa cidade, com uma capacidade de desafiar os limites entre teatro, dança, música e artes visuais, criando um universo tão potente e inventivo, uma apoteose visual e cênica. E foi impossível assistir quase três décadas depois a Sambaracotu que ela ajudou a criar com o Coletivo Canoas de Dança sem recordar daquela encenação, que inclusive, se a memória não me engana, tinha Álvaro Rosa Costa no coro e que agora está ao lado de Carlota e Simone Rasslan para nos trazer outra produção tão instigante e apoteótica.

Há de ser destacar agora que a nova obra é atual e política na medida certa, inclusive ao retomar a influência de Mario de Andrade que mergulhou sem firulas na cultura do nosso país macunaímico, musical, carnavalesco que enfrenta hoje um dos momentos mais nefastos e ameaçadores à arte, à cultura, à liberdade e à irreverência. E é disso tudo que Sambaracotu é feito, de uma deliciosa e escandalosa celebração visual e coreográfica. Uma encenação que bota a sacudir nossas referências culturais, atualizando as questões que poderiam estar afeitas ao modernismo que completa seu centenário e mesmo assim continua nos sinalizando para ciladas e desafios de encarar nossas identidades nacionais tão múltiplas e plurais.

Para mim a montagem é uma verdadeira versão de uma Broadway tupiniquim, sem que isso implique numa importação de modelo ou padrão, mas da capacidade de criar um modo singular de misturar os elementos cênicos para estabelecer sua dramaturgia barroca, pós-moderna, non sense, bem brazuca. Parece um manifesto que carrega marcas das referências de Carlota que bebe no teatro do absurdo, na dança teatro, resgatando e reconfigurando seu legado de obras como Quem é?, Lautrec, O Banho, A família do bebê, Ditos e Malditos. Num país quase sem memória talvez seja difícil identificar, mas está tudo lá e ressignificado, o que é um mérito dos grandes artistas e que Carlota parece fazer de forma tranquila e generosa, partilhando com os espectadores todo seu patrimônio artístico para nos sacudir nas poltronas e vibrar como num estádio de futebol, porque ela nos faz lembrar que ali, na plateia somos todos de um mesmo time que torce por um futuro cheio de esperança e de motivos para celebrar.

Essa proposta vem nutrir-se e ganhar poderosos contornos com a parceria de Simone Rasslan e Álvaro Rosa Costa que assinam a direção dessa inspirada tríade. E nesse aspecto a musicalidade da encenação encontram sua devida tradução seja mas matizes sonoras das músicas e canções como na polifonia de vozes que evocam nossa gente, nossa flora, nossos poetas e nossas poetas de todas as cores e lugares, nossos lamentos e nosso brados bem retumbantes.

Outro grande mérito é a entrega do elenco às propostas coreográficas. Carini Pereira, Carol Fossá, Danielle Costa, Leslie Taube, Tiago Ruffoni, Alex Gonzaga e Tom Peres se jogam e constroem sutis e intrincados arranjos de movimentos numa dramaturgia de dança que faz do corpo o lugar das possíveis interpretações e sentidos, pontuados por uma caprichada pesquisa de linguagem que contou com a contribuição da poeta Eliane Marques.

Soma-se a isso a cenografia de Rodriko Shalako e Paulo Pereira e os figurinos de Gustavo Dienstmann na criação de um espaço e objetos que envolvem, sugerem e promovem o jogo com objetos e materiais. Tudo com a iluminação e videografias de Ricardo Vivian que faz do teatro inteiro a arena do embate estético.

Enfim, saí do espetáculo nesse momento de retorno aos palcos à presencialidade, às lutas, pensando nos versos do Mario de Andrade intitulado Poemas da amiga:
“Gosto de estar a teu lado,
Sem brilho.
Tua presença é uma carne de peixe,
De resistência mansa e de um branco
Ecoando azuis profundos.

Eu tenho liberdade em ti.
Anoiteço feito um bairro,
Sem brilho algum.

Estamos no interior duma asa
Que fechou.”

Obrigado Carlota e essa trupe que nos liberta e nutre as nossas resistências mansas ou inquietas.

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