
Levar ao palco o texto De profundis, Oscar Wilde é uma corajosa, necessária, densa e extremamente entusiasta escolha de Dilmar e Gabriel Messias, em tempos de pós-pandemia(?!) e de um país e mundo de retrocessos conservadores por todos lados. E por isso restam apenas duas apresentações imperdíveis no Teatro Renascença da Porto Alegre invernal. Foi assim, na sexta feira gélida, a que assisti a montagem, bastante envolvido e afetado, nesse momento de retomada das temporadas teatrais e numa semana em que comemorou-se, mundialmente, o Dia do Orgulho LGBTQIA+. E, portanto tão tocante ver o exercício pungente de Elison Couto se desnudando à nossa frente, fisica, emocional e moralmente a partir do texto do escritor inglês, preso por “atos imorais contra rapazes” na Inglaterra no fim do século XIX, que o levaram à falência, desprezo e à morte prematura aos 46 anos.
E daí, enquanto assistimos à encenação, são muitas coisas que vão nos mobilizando. Primeiro porque temos a fala de um prisioneiro submetido ao trabalho forçado. Um prisioneiro como todos nós, de certa fora, que ficamos isolados durante os últimos anos e ainda permanecemos. Dimensão que se amplia com aquele ator sozinho no imenso palco acompanhado apenas por uma pianista que insiste na beleza doída de uma melodia que tenta nos resgatar. A gente até pode se distrair e com comédias ligeiras, mas é essa condição de solidão iminente que acompanha nossa existência. Encarar isso é inevitável e que bom ver encenadores com a coragem disso, sem se furtar desse desafio.
Mas não é apenas isso que a montagem traz, porque o texto primoroso de Wilde é discurso também um sobre amor e arte, duas questões que nos condenam e salvam. Ao tecer suas elaboradas, refinadas e viscerais considerações sobre os sentimentos humanos, sobre a literatura, sobre a moral, sobre a justiça, sobre a religião e sobre a paixão, o escritor de O retrato de Dorian Gray tece um complexo painel existencial articulando valores e emoções, Cristo e Eurípedes, ideologias e crenças. Uma capacidade de encarar temas de maneira lúcida e destemida, de uma honestidade assustadora às vezes tão rara nos dias atuais e tão vital ao mesmo tempo. Elison faz um exercício comovente e firme que exige transitar por tantos extremos de uma razão lúcida e sagaz a uma alma dilacerada. E faz isso com um grande e maduro artista, sem concessões. E desse embate, acompanhamos um texto claro, firme e ainda assim repleto de nuances de emoções.
Se, como diz o autor “somos palhaços do sofrimento” e submetidos muitas vezes ao maior dos pecados que é a superficialidade, a montagem nos leva por uma afirmação das convicções que não concessões, numa época que ainda se condena de certo jeito de maneira tão implacável quanto Wilde o foi no seu tempo. Do enfrentamento do mundo ante à penúria, á dor, e ao desamor. Como sair desse mergulho capaz de ainda respirar? Wilde nos revela de maneira contundente. E no palco do teatro terminamos irmanados com o personagem que deitado desnudo e ensanguentado soluça na boca de cena. Afinal como anunciou Wilde, “viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe.” Coisa boa enfrentar uma noite gelada, e ver a gente viver com a arte ali junto. E a gente se lembra o porquê de sair de casa e estar ali sentado na poltrona de um teatro numa noite fria de Porto Alegre. Ainda dá tempo, vai lá!
De Profundis – Epístola: In Carcere et Vinculis de Oscar Wilde
com Elison Couto
Direção: Dilmar Messias e Gabriel Messias
Cenografia e Figurino: Diego Steffani
Piano: Elaine Foltran e Francisco Petracco
Iluminação: Carlos Azevedo
Maquiagem: Denise Souza
Foto: Adriana Marchiori
Voz do juiz: Luiz Paulo Vasconcellos
Produção: Circo Girassol