
O teatro é político e nunca deixou de ser. Não porque se reveste de uma posição partidária ou ideológica, mas sim por expor de maneira tão humana as tramas e contradições do poder que afeta e rege a vida de todo cidadão, mesmo aquele que se diz descrente na política e seus meandros. Não à toa a relação com o teatro ao longo da história mostrou a sua a dualidade com a política, às vezes querendo fazer uso se apropriando desse discurso como veículo privilegiado, às vezes tentando silenciar o que ele pode revelar de maneira tão crepitante. Então não há como não aplaudir efusivamente como fez a plateia ontem no Teatro Bruno Kieger da Casa de Cultura Mario Quintana, ao término dos 95 minutos de O inverno do nosso descontentamento – Nosso Ricardo III, da Cia Teatro ao Quadrado, com direção de Luciano Alabarse.
Ontem sextou! E em um momento tão delicado e tenso do nosso país, minha opção não foi beber pra esquecer, mas sim foi comprar ingresso e ir para sentar numa plateia na busca de me embriagar de um bom teatro. E aquilo que poderia ser uma noite melancólica, de risadas ligeiras ou o motivo de muita ressaca em tempos sombrios que atravessamos, foi uma experiência recheada e emoções que me encheram de uma animadora euforia e empolgação. Primeiro porque pude ver o resultado da montagem de um encenador que encontra a mão firme e inventiva, que produziu uma das grandes obras da cena local. Soma-se a isso a desconstrução habilidosa de um texto do grande dramaturgo inglês William Shakespeare. E acrescente-se a celebração de 20 anos da Cia Teatro ao Quadrado que coloca em cena dois atores fabulosos: Marcelo Adams e Margarida Peixoto. Num país que luta para não perder a memória, o teatro mostra sua força e potência que arte mobiliza.
A montagem revisita o texto de Ricardo III e o revira pelo avesso, fazendo um percurso de figuras históricas que passa por Hitler, Napoleão, Putin, Trump, Plinio Salgado, generais, ditadores, tiranos, autocratas, demagógicos e inevitavelmente pelo atual nefasto presidente da república Jair Bolsonaro. E o texto resulta em um teatro verborrágico, criativo, crítico que às vezes poderia até parecer repetitivo ou mesmo ingênuo, mas que ganha especial relevo com as interpretações magistrais de Marcelo Adams e Margarida Peixoto.
Marcelo Adams faz um verdadeiro tour de force. O ator passeia por incontáveis tipos com modulações e maneirismos. Sem precisar de múltiplos recursos além de um corpo versátil, ele veste e desveste-se de tonalidades e intensidades de voz, flana pelo palco e se contorce encontrando a medida exata de construir um personagem que arregimenta e conecta suas idiossincrasias. É um exímio e refinado exercício cênico que nos arrebata. O olhar, o foco, encontra a mira certa, chega no espectador, vaga pelo espaço, procura, se perde e a gente vai junto nessa (des)humanizada viagem também nos construindo e desconstruindo. Marcelo Dispara como uma metralhadora, frases aceleradas e que encontram a devida pausa, suspensão e suavidade. Às vezes o discurso é bem articulado e didático até e logo faz uma sutil curva para ganir, bradar, uivar, doído ou sedutor, comovente ou revoltante. Há uma maturidade, uma honestidade e uma domínio que me fez ter vontade de sentar pra conversar com esse Ricardo ali no palco, pois tudo tem dignidade de feitura nessa elaborada carpintaria teatral. Tudo a serviço de um texto bem urdido e um cena devidamente erguida.
E talvez essa acertada figura só consiga nascer por ter um contraponto certeiro que é Margarida Peixoto que faz a vezes da rainha que pragueja e amaldiçoa, a menina que sangra dilacerada e o coronel cúmplice do tirano. A personagem do coronel é um achado, que sem pronunciar uma palavra, pois não tem língua, encontra um jogo de expressões e corporificações cheia de gestuais que traduzem o jogo dúbio, perverso e simbiótico da dupla em cena.
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Luiciano deixa e rola. Mostra que está à vontade e atento nessa montagem que é fluida e encontra a forma de fazer um grande tributo à arte, ao teatro e dar seu recado. E não apenas porque recorre a fragmentos de outros textos da dramaturgia ou de pensadores, filósofos e escritores para tecer um refinado e complexo mosaico de um mundo em curto circuito. No meio disso tudo tem uma coleção de vários memoráveis trechos como quando há a referência a Adolf Hitler que é agro, que é pop, que é tech, apontando para como na era do consumo tudo vira mercadoria e encontra ancoragem em discursos utilitários e lucrativos até. Revisitar Shakespeare e fazer essa hábil desconstrução presenteia o público com uma montagem singular e necessária, lembrando que entretenimento não é esquecimento nem alienação e enfim, como é pronunciado estamos num momento em que é “Outubro ou nada”. Últimas apresentações hoje e amanhã às 20h no Teatro Bruno Kiefer. Não perde, afinal porque sempre será político nosso viver ou a ameaça de não poder se viver como podemos e devemos!