“Água redonda e comprida”, contemplado no edital (Re)-Volta da Dança 2022 é um resultado de parceria inédita de co-produção do Centro Municipal de Dança da Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa com o Goethe-Institut Porto Alegre e foi apresentado dia 3 de novembro. Além de trazer uma inciativa importante de fomento à produção local, a primeira obra a ser contemplada é um diferencial no contexto dessa produção ao mergulhar no universo das águas desde a cosmovisão do povo Kaingang. Geórgia Macedo, bailarina contemporânea, e Naiane Gakre, uma pré-adolescente Kaingang, estreiam em cena com um espetáculo que mergulha neste universo e nos convida a colocar os pés nessas águas e nos banharmos até.

Assistir a essa produção exige disposição a mergulhar nessas águas, temos no palco outra temporalidade, outra narrativa, outro imaginário que se desenha hábil e generosamente entre as intérpretes. Fui me dando conta, ali na plateia, que apesar de estar aberto e interessado na proposta que se desenhava, carregava meu imaginário colonizado por parâmetros e padrões de arte da cena que não encontram ali reverberação. A experiência ali, exigia desvestir-se, desnudar-se para poder perceber o que ali se estabelecia.

E assim fui percebendo que estávamos diante de uma obra de imenso valor, traduzido no sensível trabalho da direção de Kalisy Cabeda e na concepção e condução coreográfica de Georgia Macedo. É evidente o quanto elas precisaram permitir seguir outras perspectivas de criação, de deixarem-se afetar por outros modos de fazer dança e entender o mundo. Então vai tudo se desenhando com uma delicadeza e singularidade ao falar de uma ancestralidade que mesmo nossa, de Porto Alegre, temos tão pouca referência, intimidade e conhecimento.

O espetáculo traz a mitologia das águas, que como seres vivos, possuem as marcas dos clãs do povo Kaingang na complementação entre as marcas redondas e compridas, que são as metades Kame e Kainru, que possibilita o equilíbrio do mundo. É nesse sentido que é dado nome às goj tej (águas compridas, dos rios e pertencentes à metade Kame), e às goj ror (águas redondas, das nascentes e pertencentes à metade Kainru).

E as cenas são primorosas no jogo cênico entre Naiane e Georgia de partilha e complementariedade, nas imagens criadas, na trilha muito bem concebida, na iluminação cuidadosa, na preparação corporal afinada e pertinente, nos elementos visuais que pontuam esse imaginário que vai sendo construído sem pressa, tramado como algum cestaria artesanal. Há sons, cores e movimentos que nos trazem a mata, a fauna, a flora, a aldeia, a vida pulsando assim mesmo ameaçada no meio da metrópole. E no final, temos Iracema e Angélica, mulheres kaigangs, nos situando na luta pelo território do Morro Santana e suas nascentes de água ameaçadas na capital gaúcha e pontuando como a cena traduz uma história e uma luta assim, poeticamente.

Não à toa, as apresentações tiveram lotações esgotadas revelando o interesse do público a esse convite. Uma produção que precisa seguir em temporada e permitindo nos (re)conhecermos em cenas subtraídas do nosso imaginário e da nossa história.

Ficha Técnica
Concepção e Direção Geral: Geórgia Macedo
Orientação: Iracema Gah Teh Nascimento
Direção Artística: Geórgia Macedo e Kalisy Cabeda
Direção Cênica: Kalisy Cabeda
Bailarinas criadoras: Geórgia Macedo e Naiane Gakre Domingos
Coreografia: Geórgia Macedo e Naiane Gakre Domingos
Preparação corporal: Camila Vergara e Geórgia Macedo
Direção de movimento: Camila Vergara
Figurinos e cenografia:  Isabel Ramil
Criação e operação de luz: Thais Andrade
Trilha Sonora e operação som: Thiago Ramil 
Voz e narrativa: Iracema Gah Teh Nascimento e Angélica Kaingang
Arte Gráfica: Vini Albernaz 
Produção: Geórgia Macedo e Virgínia Cotta de Mello