Cia Jovem de Dança revela talentos da periferia. E agora?

A apresentação de Parco, da Cia Jovem de Dança, no Teatro Renascença no dia 7 de dezembro marcou o encerramento do 29º Porto Alegre em Cena. O que se viu em cena foi um grupo de bailarinos e bailarinas cheios de talento, capaz de nos envolver e fascinar, trazendo sua realidade, colocando suas singularidades e revelando uma rara maturidade cênica. O que é motivo para celebrar, mas também para sinalizar que com o final desse um ciclo de formação exitoso no projeto da Cia Municipal de Dança, agora o futuro desses jovens artistas está em jogo.

Sim, esse é um relato cheio de muito envolvimento, pois em 2016, vendo o potencial de alunos e alunas das Escolas Preparatórias de Dança (projeto que nasceu com a Cia Municipal de Dança, parceria da SMC e SMED), percebi que era necessário um outro estágio de formação e profissionalização. A professora Débora Leal que coordenava a Cia Municipal comigo na época de imediato entrou na empreitada. Assim nascia a Cia Jovem de Dança, com estudantes da periferia cheios de vontade e condições de serem bailarinos e bailarinas profissionais. E portanto, foi feita uma seleção e 20 estudantes passaram atuar nas manhãs de sábado, com a direção de Stephanie Cardoso e Driko Oliveira, integrantes da Cia Municipal, e produção da Luka Ibarra, na saudosa sala Rony Leal, na Usina do Gasômetro. E esse já foi o primeiro grande resultado: adolescentes que acordavam muito cedo, saiam da Restinga, do Sarandi, do Passo das Pedras, da Vila Mario Quintana e da Vila Cruzeiro para se aperfeiçoar. Um trajeto que só foi possível porque estiveram juntos Nara Melo, Maria Emilia Gomes, Fernanda Santos, Neca Machado, Kleo di Santys, Iara Deodoro, Carla Souza e Ilza do Canto auxiliando a manter e resistir numa rede inestimável de afetos e esforços.

De lá pra cá, nasceram espetáculos como Motilidade, Parmi e E se nos calam. A Cia Jovem participou da abertura do Poa em Cena ao lado da Orquestra Villa Lobos. Dançaram ao lado da Cia Municipal em Música de Cinema, com a OSPA. Fizeram flashmobs, trabalharam muito, aprenderam muito, tiveram muitas alegrias e decepções, enfrentaram todos os obstáculos possíveis e a maioria já entrou na vida adulta, concluindo sua formação escolar. Criaram seus coletivos, como o Flashblack.

Por isso Parco, apresentado agora, não é apenas mais uma sensível e bem realizada montagem, mas é a tradução de um percurso. E um percurso que nos apresenta intérpretes tão diferentes, com qualidades tão distintas e ao mesmo tempo uma mesma madura consciência de cena. A coreografia de Driko Oliveira soube trazer elementos dos quais partilhavam esse grupo ao mesmo tempo que dava espaço para as individualidades. Parco como o nome traduz fala de tudo que é pouco num mundo tão desigual, mas também fala de tudo que tão grandioso que pode daí surgir. Enquanto vestem e desvestem-se, cada intérprete evidencia as camadas que escondem ou que desnudam, que afirmam e aquecem ou sufocam, que evidenciam ou apagam. Driko Oliveira conseguiu criar uma estética própria com esses jovens, densa, profunda e humana.

|Iago Poesch desliza e voa, faz do palco seu território. Paola Baldissera faz o gesto ganhar relevo no espaço e nos alcançar e envolver. Jean Ferreira é um acontecimento, dono de seu corpo, do ritmo, das pulsações como ninguém. Gustavo Conceição impõe um força que parece brotar das profundezas do interior, aflorando em cena. Jessica Paim desafia e se impõe com malícia e personalidade. Maria Rita Schardosim parece tecer movimentos no ar como uma rendeira hábil. Helen Gonchoroski cria seu proprio padrão de fazer sua dança. Mariane Lisboa Farias revela ser dona de uma expressividade impressionante. Eduardo Czerner mostra que o palco não tem limites, irradia dança, expande-se pelos quatro cantos. Raissa Lisboa Farias sabe a medida de cada movimento, certeira. Nathaly Rafaela irradia a beleza de uma presença serena e tranquila pronta para eclodir a qualquer momento. Rayner Victor Moreira nos convida a mover junto, portanto nos (co) move. E mesmo ausentes nessa apresentação também ali ecoavam o talento de Marielly Cruz (já atuando no Gira Centro de Dança), Lucas Rieger (já atuando na Petit Danse no RJ), Natasha Melo, Leticia Santiago, Tatiele Cardoso, Rafael Silva, Jade Fidelis, Lyagner Chagas, Flavio Fraga Gimenez e Anderson Mendes, entre outros, pois era nessa e dessa diversidade de corpos, lugares, trajetórias, potencialidades que a Cia Jovem amadureceu.

Já esse ano o projeto seguiu devido a uma emenda parlamentar do vereador Jonas Reis, pois a maioria já não é mais estudante da Rede Municipal. O Centro Municipal de Dança buscou essa estratégia para recuperar o trabalho pós-pandemia. E agora os desafios se colocam. O ideal seria poderem passar a integrar a Cia Municipal de Dança, contudo com a redução gradual dos recursos de 20 para 8 bailarinos esse caminho será pouco viável para a maioria. Alguns já passaram a buscar caminhos profissionais fora da dança infelizmente. Por outro lado, outros já passaram a atuar como professores nas Escolas Preparatórias de Dança onde começaram sua formação em 2014 e isso é uma conquista importante.

Mas o que fico pensando é o o valor tão pequeno de recursos que seriam suficientes para manter esses jovens seguindo seu sonho de dança, de poderem atuar como bailarinos e bailarinas que conquistaram uma maturidade para esse percurso inicial e que por seu contexto social enfrentarão muito mais dificuldades de inserção no mercado de trabalho. Se houvesse um investimento possível, seguiriam inspirando e incentivando outras crianças e jovens. Que esse investimento possa vir do poder público, mas também da inciativa privada sob forma de um patrocínio, um investimento de enorme responsabilidade social para nossa cidade.

Esses jovens de qualquer maneira já têm um patrimônio, forjado por um projeto público e com a dedicação e paixão de cada um e cada uma, e isso ninguém tira deles. E tem um espetáculo fantástico nas mãos (e pés) que pode seguir carreira em temporadas, eventos e festivais de artes cênicas profissionais e o documentário produzido por Fernando Muniz logo chega para guardar a memória de todas essas histórias. Agora ficam as possibilidades e os desafios de conseguirem seguir independentemente, de puderem ter um apoio público ou buscar um financiamento. Ou quem sabe também seguirem carreiras individuais em outros grupos e cias, que também é válido, mas que ver esse elenco junto é um privilégio, isto é, e que tem uma condução irretocável de um coreógrafo que marca uma estética rara e que merece não de dissipar nesse momento que alcança tal magnitude. Em breve saberemos o que o futuro reserva e comemoramos ver tudo que a dança pode gerar em circuitos em que as oportunidades muitas vezes não chegam. Que a história possar ser escrita de novas formas necessárias e urgentes.

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