
A produção de dança no Rio Grande do Sul padece ainda da falta de circuitos que permitam chegar obras de fora da capital Porto Alegre. E que bom que a programação do Palco Giratório do Sesc vem minimizando essa lacuna e na sua 17ª nos trouxe uma instigante montagem: Esporas, de Santa Maria. Uma montagem de dança contemporânea que se debruça sobre a identidade gaúcha e as tensões geradas na (re)produção de masculinidades. Um tema complexo e delicado no qual Gustavo da Silva e Helder Machado se jogam, dispostos a coices e carícias.
O espetáculo inicia com duas figuras masculinas mascaradas e de torsos nus. As faces estão cobertas por uma caveira de boi, vestem calças coberta de farta pelagem animal e os pés são um grande parte de cascos com os quais trafegam por um palco coberto de terra preta. Se instaura de largada um território mítico, do universo rural e campeiro que marca a cultura do Rio Grande do Sul, mas que também remete às figuras mitológicas gregas dos faunos. Aliás, a dança produziu outra potente obra criada por Nijinsky em 1912, “L’Après-midi d’un faune / O entardecer do fauno” e o que traz um contorno histórico e estético ainda mais bacana para a obra em cena. De alguma forma estão ali esses faunos que flanam pelo imaginário da dança e que se atualizam de alguma forma naquelas figuras que cantam os versos infantis de “boi, boi, boi da cara feia” enquanto desenham no chão, em que se aproximam e afastam, se tocam com receio.
Seguem o desvestir dessa roupagem animalesca e a construção dos totens enquanto se pronunciam ali os homens de carne e ossos e fragilidades. A respiração ofegante, a pele, o olhar, os pés descalços. Humanos largados sobre a terra, andarilhos da suas identidades, nas fronteiras físicas e emocionais. E daí talvez se possa pensar em um segundo movimento de uma possível trilogia que se completa com o movimento final com as vestimentas de trajes gaúchos e o enfrentamento das masculinidades que disputam o controle, às redes um do outro.
Enfim, um exercício poético sobre a masculinidade e os imperativos de uma cultura regional que se impõe e condena até o que não corresdponde à tradição. Força e brutalidade estão ali, com todas as outras camadas que compõem esse jogo identitário. E é tudo tão rico que fiquei com o desejo que fosse uma trilogia, pois são tantos e tão complexos os elementos mobilizados que talvez o tempo foi reduzido para tudo que ali cabe. Ainda precisamos tanto conhecer desse universo e suas idiossincrasias. Dilemas de um universo pampeiro que a dança tanto pode trazer para problematizar assim, cenica e coreograficamente. Então a gente agradece ao Helder e Gustavo por nos convidar a esse sensível e inteligente exercício.