No compasso cardíaco

         Não precisa pensar muito. Quem não tem uma música que por mais que se tente escapar te persegue na rádio do carro, na sala de espera do dentista, no 3 em 1 do vizinho, que insiste em escutar a noite para alegria de sua insônia. Aquela que lembra um certo alguém que foi seu ou que pelo menos você desejou que fosse. Pode ser um Trocando em miúdos, do Chico Buarque, ou um Ne me quittes pas, na voz da Piaf ou mesmo um pagode que por mais detestável que seja, para teu desespero, casa exatamente com você. Quem nunca teve que jogue o primeiro acorde e acorde o coração ainda que maldito.

         Maldito coração me alegra que tu sofras, texto de Vera Karam, com direção de Mauro Soares leva o nome de uma canção de Cláudia Barroso e coloca em cena os dissabores amorosos de uma mulher. Pérolas do clichê sentimental, dirão alguns. Tintas de um dramalhão, afirmaram outros que se deleitam com Almodóvar, mesmo negando veementemente qualquer possibilidade de identificação com o universo kitsh da paixão. Em Maldito coração, Vera Karam investe sem receio no universo dos sentimentos assumidamente românticos para traçar um panorama cruel de uma mulher em volta com suas desilusões (e ilusões) afetivas. Uma personagem que se perde nos limites das verdades e mentiras quando se trata de assegurar algum esboço de felicidade ainda que descaradamente simulada.

         Nessa lógica, dois anos, três meses e 25 dias de relacionamento são vistos como quase três anos que são quase cinco e por aí vai um amor sem fim. Afinal o que é o tempo para quem ama. A eternidade é um farelinho no café colonial da paixão, poderia dizer a personagem.

          Coração à parte, a peça antes de tudo percorre o trágico caminho de um indivíduo tentando se agarrar a algo nesta corrente de paixões incompreensíveis do mundo moderno. O humor incômodo que permeia o espetáculo vem do desespero dessa mulher que se perde no jogo que lhe garante alguma fantasia de felicidade. Ela é uma perdedora porque nunca chegou arriscar um empate, mas que vibra com os gols do adversário como se fossem os seus.

           Nádia Mendes representa com garra e graça essa mulher que transita pelo patético, reforçado pela maquiagem carregada e figurino cafona. O andamento do espetáculo se estabelece num tom de cumplicidade, que não são prejudicadas mesmo quando algumas cenas buscam uma intimidade com o público. O texto já cria uma atmosfera na qual personagem divide a sua angústia. Mais do que uma confissão para plateia é uma confissão dessa mulher para si mesmo. A personagem mergulha em seus devaneios sempre justificando as atitudes. Ela está alerta. O importante é fazer a dor passar, é sanar os mais pecaminosos males cardíacos. Males que nos fazem pensar como seria bom vivermos (não sozinhos) felizes para sempre… (as reticências são para abusar da deliciosa pieguice da esperança vindoura).

A Crítica, Teatro Gaúcho em Debate 1994. Conselho de Redação: Luciano Alabarse, Luis Augusto Fischer, Luiz Paulo Vasconcellos, Sandra Dani, Luiz Paulo de Pilla Vares.

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