Ainda ser bailarino aos 65

A gente morre muitas vezes na vida. Às vezes nos matam inúmeras vezes. Sonhos despedaçados, planos soterrados, paixões sufocadas, desejos alvejados. E na vida de um bailarino talvez isso aconteça com mais intensidade num contexto que usualmente prima pela beleza e técnica, muitas vezes de maneira impiedosa. Por isso apenas Pie Jesu Ressuscita-me já seria uma obra a se dar atenção, ao colocar em cena Edison Garcia, uma bailarino e coreógrafo aos seus 65 anos de idade, encarando a sua própria trajetória, sem concessões.

Em um país que não prima pela memória é bom lembrar que Edison atuou em importantes companhias de dança com o Ballet Mudança e Ballet Phoenix, na década de 1980, dançou ao lado de importantes bailarinas como Luciana Dariano, Anette Lubisco e Thais Petzhold, dirigiu o Ballet Phoenix na década de 1990, criando obras como Vertigem (1994), uma das mais premiadas no Açorianos de Dança e um sucesso de público, de fazer fila na calçada. Ele ajudou a afirmar a cena do jazz dance na capital gaúcha, experimentou a linguagem contemporânea, foi atuante no carnaval, consolidou seu próprio espaço, o Cdeg – Cia de Dança Edison Garcia. Ele dedicou-se nos últimos anos ao trabalho de dança para terceira idade sacundindo palcos e festivais com suas alunas.

E a cena de Pie Jesu é uma ode a um artista que decidiu desnudar-se. E não que ele já não tivesse se desnudado mesmo em muitas das suas coreografias, mas nesta obra Edison se desveste de tudo aquilo que o aprisionou de muitas formas em sua trajetória. Cabe lembrar que se a dança ainda hoje cobra um padrão corporal e técnico de quem a ela se dedica e há quatro década os imperativos da dança clássica podiam ser muito mais implacáveis. Edison tinha muitos atributos como intérprete, mas também não correspondia ao ideal de virtuosidade exigido e seguiu mesmo assim, buscando corresponder e por vezes se autorizando escapar desse sistema.

Nesse exercício solo ele se permite estetica e poeticamente estabelecer seu universo sem se importar em corresponder. Estamos diante de um palco quase ritualístico com elementos místicos e um proscênio com inúmeras velas acesas. Num primeiro momento temos esse corpo afetivamente amarrado, sufocado, limitado em cena. Gradualmente ele se apropria do espaço e de seus elementos, ganha voz e corporeidade, rasgadamente dramática e celebrativa, assume sua sexualidade latente e sexagenária. Em cada gesto vamos evidenciando uma maturidade que reveste os movimentos. O dançar não busca apenas uma espetacularidade alheia, mas aquela que lhe pertence, festejando sua identidade e interioridade, transitando entre a densidade e a leveza, entre a melancolia e a alegria efusiva, entre o sagrado e o profano, entre o romântico e obsceno.

E eu ali, diante daquele que me deu a primeira oportunidade de ser bailarino. Daquele que me formou como intérprete. Daquele que discordei. Daquele que me afastei esteticamente em busca de outros caminhos. Daqueles todos que o fizeram e que de alguma forma aparecem agora em cena para partilhar com a plateia suas potencialidades e fraquezas, suas certezas e dúvidas, suas angústias e prazeres. Daquele que comunga comigo tantas coisas em comum.

Não à toa, o final traz as palavras do replicante Roy, de Blade Runner, no texto antológico Lágrimas na chuva, em que anuncia o tempo de morrer: “Eu vi coisas que vocês não imaginariam. Naves de ataque em chamas ao largo de Órion. Eu vi raios-c brilharem na escuridão próximos ao Portal de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer. ” Se no clássico filme de Ridley Scott é o fim para o personagem, para Edison é um renascer, pleno e convidativo a experimentar. Abram alas, que ele vai passar!

Pie Jesu Ressuscita-me tem sessões até novembro sempre às 20h, na Av. José de Alencar 1340 – Menino Deus

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