Danças correspondidas

Escrever cartas implica em muitas coisas, como o desejo de destino, de uma mensagem que chegue, de uma mensagem escrita de forma íntima, informal, pessoal e de uma possível e esperada resposta. “Cartas honestas a danças duras” faz sua estreia instaurando uma efetiva e afetiva correspondência coreográfica. Em cena uma cuidadosa e incisiva montagem que se convida e nos convida a pensar sobre as mensagens que insistem em ser trocadas no universo da dança e as que pedem a oportunidade de entrega e destinatários dispostos a ler o que a dança também pode e deve escrever.

E somam-se acertos no trabalho concebido pela bailarina e coreógrafa Paula Finn. O primeiro deles é de se debruçar sobre duas referências inspiradoras e disparadoras para essas questões. Cartas sobre a dança, de Jean Georges Noverre e Cartas a um jovem poeta, de Rainer Maria Rilke. O primeiro foi um revolucionário que no século XVIII encontrou espaço para fazer uma oxigenada reflexão sobre o ato de criar que envolve a dança, os corpos que dançam, a técnica que lhes é imposta. Em meio a um universo balético ele proclama: o êxito numa criação de dança só é possível “se o coração se inquieta, se a alma com vivacidade se emociona, se a imaginação se incendeia, se as paixões trovejam e o gênio clareia”. E Rilke já na introdução de sua obra alertava que “quando fala alguém grandioso e único, os pequenos têm de se calar.” Isso não só dá estofo ao trabalho como o reveste de pertinentes provocações para lidar com as “danças duras” que o título anuncia.

Outro acerto é não correr o risco de dar literalidade às cartas, ilustrá-las, representá-las com leituras e imagens. O teor das mensagens trocadas estão de fato incorporadas. Está nos corpos dos intérpretes as leituras e releituras. As corporeidades se abrem para o discurso e uma escrita visceral, de carne, pele, ossos, músculos. E que potência, que tanto a nos dizer tem esses corpos que vão honestamente revelando marcas, histórias, fragilidades, incongruências, afirmações, negações, interrogações, exclamações.

Também soma-se a todo esse universo a trilha sonora executada ao vivo por Gabriela Lery. Ela brinca com a tradicional contagem musical da dança no seu “1,2,3,4,5,6,7 e 8”. Mas explora também e muito bem sonoridades, vocalizes, combinações inesperadas, distorções de quem é uma destinatária atente de tudo que o elenco anuncia. Há um diálogo elaborado e refinado, sem ser enfadonho. E é preciso se destacar os figurinos de Raiú Sokal e a luz de Iassanã Martins, sutis e por vezes quase pictóricos, como se a gente estivesse vendo sendo criadas e se desfazendo à nossa frente.

Em alguns momentos o espetáculo até assume o tom ácido das proprias cartas de Noverre, criticando a técnica esvaziada e inócua de certo entendimento empobrecido do balé clássico e até debocha de trechos de repertórios como um pas des quatre de O lago dos cisnes. Um tom de humor, porém até dispensável, pois o que está em cena é tão fascinante que já dá seu recado de que a técnica é um meio e não um fim em si. E não importa se ela vem do balé, das danças urbanas, do flamenco ou até mesmo das danças contemporâneas. É na poética dos corpos dançantes donos de suas capacidades singulares que o encantamento se dá e se faz. Estão reunidas ali belezas, delicadezas, forças, fragilidades, estranhezas que nos comovem e nos fazem destinatários fervorosos.

Na noite que acompanhei a apresentação de estreia na Sala Álvaro Moreyra outro aspecto me chamou a atenção, além do teatro lotado. Eram poucos espectadores recorrentes de dança, da própria comunidade da dança. As cartas conseguiram chegar a outros destinatários, destinatárias, destinatáries e a correspondência estava ali, viva, ampliando o público para a dança, talvez porque se abrindo a um outro fluxo de comunicação. Outros corpos em cena, convocaram outros corpos na plateia. E isso é muito, muito importante.

E a obra gera ainda aquela sensação tão saborosa que as cartas propiciam. O desejo de retomá-las, de ler a carta inteira, ou o trecho preferido incontáveis vezes. Mérito de um coletivo que não deixa a honestidade apenas no título e faz dessas escritas corporais confessionais o começo de uma possível troca de correspondência que não termina com o apagar das luzes. Afinal, corresponder-se é isso, é sempre a espera das mensagens que possam chegar e que as respostas nelas dependem de nós também co-respondentes. Cada vez mais me interessa esse tipo de dança.

Concepção: Paula Finn
Direção Cênica: Camila Vergara
Elenco: Jo Ovadia, Paula Finn e Zaire Rodrigues
Coreografia: Camila Vergara e Paula Finn
Figurinos: Raiú Sokal
Trilha Sonora Original: Gabriela Lery
Iluminação: Iassanã Martins
Operação de som: Anne Plein
Produção: Kairo Ferreira e Tiago Bayarri
Identidade visual: Noah Dias

Fotos: Lau Baldo
Apoio: Centro Municipal de Dança, Prefeitura Municipal de Porto Alegre, e Goethe Institut Porto Alegre

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