Artifícios da Virtuose Dissidente: a polifonia dançante do acontecer

Coisa boa dar-se tempo ao mover. Coisa boa dar-se tempo ao mover. Coisa boa dar-se tempo ao mover. Repito três vezes como mantra, pois pouco tenho encontrado esse tempo em apresentações apressadas e inflacionadas de imagens que nos soterram e por vezes quase sufocam a experiência de contemplar (e nada contra essa outra temporalidade, mas tudo contra só essa outra temporalidade por aí). E ao encontrar esse tempo a gente poder ver cada corpo, os gestos, as intensidades, as delicadezas, as identidades, os estranhamentos, as relações, o ocupar e transitar pelo espaço assim cada um e uma de forma única e nisso, espetacular. Sem mais recurso do que estar ali, presente, atento, aberto e disposto a. Assim é a experiência de Artifícios da virtuose dissidente foi selecionado no Edital (Re)Volta da Dança 2023, resultado de uma parceria entre o Centro Municipal de Dança e o Goethe-Institut Porto Alegre.

O projeto realizou oficinas de dança contemporânea, performance e experiência cênica gratuitas para o público interessado e a partir dessa experiência foi criado o espetáculo de dança inédito. E o resultado cênico foi concebido pelas artistas Roberta Fofonka e Janaína Ferrari (duo ROJANA), do Grupelho, que vem produzindo obras que vem se destacando na cena local como Rinha (2023), Ilha (2022) e Tiger Balm (2019). E nasce aí mais uma obra diferenciada, inspiradora e inquietante no melhor sentido.

Em cena um elenco que se amplia com intérpretes criadores/criadoras além da dupla de diretoras, Débora Poitevin, Bruno Cunha, Bruna Chiesa, Gal Freire, Tatiana da Rosa, Patricia Nardelli, Jo Ovadia e Fayola Ferrreira. Corpos e moveres diversos e quantas belezas nesse desvelar. Dobras, giros, braços que se prolongam, passos que levam sem pressa, firmes no pisar ou cambaleantes, olhares (sim o olhar também dança e nos convida), saltos e sobressaltos, quietude e suspensão, explosão e implosão. O corpo é um universo, micro e macro e aquele coletivo em cena nos abre esses mundos recheados de subjetividades fascinantes, sem necessidade de intervenção tecnológica. Carne, pele, ossos, músculos dando seu recado para quem aceita o convite.

E tem ainda a música. A música que não vem de nenhum aparelho ou mídia. A música vem desses corpos e do espaço. Vem no ranger, no estalar, no baque da queda, no sapatear, no deslizar, no arfar, no respirar suave, no gracejo, na garganta que arranha algo inarticulado. Ou ainda de um brinquedo mecânico que se debate em cena para logo silenciar, esgotada sua bateria ou seu circuito que finda sem continuidade. E ainda na voz que gradualmente se propaga. “Meu corpo não é só uma estrada vazia”, diz alguém, se propondo a ir “além da linguagem”. E as vozes se sobrepõem, se combinam, se confundem talvez tentando “desorganizar a ideia de si mesma”. Ou que sentencia apenas: “Polenta frango assado”.

Tudo arrematado por um estado de atenção e presença que destoa da vida contemporânea desatenta e ansiosa do depois. Uma atenção cuidadosa e interessada no outro, outra, outres. Interessada em quem divide conosco o mesmo o espaço, talvez o grande desafio do nosso tempo. Um exercício de alteridade que se expande e envolve.

E não teve como nesse momento em que retomo alguns estudos em literatura, deixar de ver as conexões com o filósofo e pensador russo Mikhail Bakhtin, uma cara fora da curva e que se cá estivesse provavelmente se juntaria ao Grupelho. Fiquei encontrando na apresentação Artifícios da virtuose dissidente uma feliz tradução do que ele chamada de polifonia. Um conceito usado para o texto que contém uma pluralidade de vozes, de discursos, sem uma voz unificadora (como a do narrador) que se sobreponha às demais. Uma perspectiva que me interessa como artista da dança, de ver a tessitura da coreografia feita dessa multiplicidade de corpos sem hierarquias. E isso se estabelece nessa montagem de maneira encantadora.

“Num exercício coletivo poético-motor de chegar em si, de corpos que se acordam” anuncia o material e divulgação. E a gente desperta, assim, sem pressa nem atropelos, e fascinados, sem deslumbre, com tudo aquilo que nos faz apenar acontecer.

Bora lá, que tem ainda apresentações hoje e amanhã no auditório do Goethe-Institut Porto Alegre (Av. 24 de outubro, 112), com entrada franca. Sexta às 20 h e sábado às 19h.

foto: Renata Stein

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