Sábado à noite. Frio. Chuva torrencial. Entro no site e compro meu ingresso e recebo o link da apresentação. Apago a luz, sento em frente à tela e me acomodo em meio a um aconchegante edredon. A apresentação começa e ainda ouço a chuva caindo. Não, não é a mesma coisa que o presencial, nem poderia e nem por isso menos saboroso, envolvente e gratificante assistir à Derrota, com Liane Venturella e direção de Camila Bauer numa realização do Projeto Gompa e Cia. Incomode-Te.

O texto do dramaturgo grego Dimítris Dimitriádes é curto e grosso, o que sempre admiro. Curto na sua brevidade, sem se alongar desnecessariamente, numa economia que não poupa a complexidade e ambiguidades das obras que mexem com competência em tratar dessa tal existência. Grosso, no sentido de substancioso, de não ser superficial, feito de verniz que se passar o dedo se desfaz, porque feito de matéria que a gente pisa e afunda, por vezes desconfortável sim, pois não fica na superfície das coisas. Não há como ser um passeio leve e saltitante. É um convite a enfrentar a lama que pesa, suja e dificulta esse andar. Afinal, é sobre entrar no coração do sono (“essa inestimável obra prima da arte e do pensamento”), no coração do mundo do qual não sei sai ileso. E como diz a personagem em certo momento: a gente saí vencido. Vencido não porque perdeu ou fracassou, mas porque não há outro modo de chegar lá no fundo de tudo isso sem aceitar essa condição.
E para enfrentar esse texto que desafia o discurso e a enunciação e sua encenação digital, era preciso uma atriz e uma diretora que têm a coragem e a habilidade de ficar com tão pouco e fazer dessa escassez a escolha acertada, necessária e coerente. A interpretação falsamente despojada nos conduz em um tom coloquial enquanto a personagem fuma, bebe água, sentada à beira da cama. E desse jeito como num bate-papo encontra as nuances e sutilezas quase imperceptíveis que vão modulando a conversa de maneira que vamos ganhando uma assombrosa intimidade com o que é dito. Porque como o próprio texto anuncia : “Não era isso que minhas palavras queriam dizer”. Há uma cuidada carpintaria de cada palavra que ganha força na economia dos gestos e na articulação que encontra a emoção certa, na medida. O exercício de uma grande atriz que Liane Venturella e que partilha isso de uma forma tão generosa e inteira que comove e nos faz mergulhar nesse texto que faz reviravoltas no pensamento e no coração.
Os demais elementos da encenação se curvam a isso. Uma luz sem maiores efeitos. Uma trilha quase inaudível. Uma câmera que registra quase parada e uma edição que não fragmenta. Um exercício artístico delicado e contundente.
Cada vez tenho preocupado menos com o que isso pode ser. Teatro?? Cinema? Performance para câmera? Encenação virtual? Me interessa cada vez mais como isso acontece e o que isso é capaz de gerar. Temos uma atriz que sabe de seu ofício e uma direção que permite isso. Não tenho receio de dizer que estive diante de uma grande momento teatral para o qual fui conectado através de uma câmera. Terça feira tem sessão maldita às 23h59. Ingressos no https://www.entreatosdivulga.com.br/derrota . Evoé!
Texto: Dimítris Dimitriádis; Tradução: Camila Bauer; Direção: Camila Bauer; Elenco Liane Venturella; Direção Sonora: Álvaro RosaCosta; Vídeo: Júlio Estevan; Apoio técnico: Nando Rosa; Fotos: Claudio Etges; Orientação de figurino: Fabiane Severo; Iluminação: Ricardo Vivian; Assessoria de Imprensa: Leo Sant’Anna; Social media: Pedro Bertoldi; Produção artísitica: Letícia Vieira; Produção: Primeira Fila Produções.