Atravessamentos de poesia e humor

Sabe quando o circo passou e a gente quer sair atrás ou mais que isso, a gente que arrumar tudo e fugir com ele? Pois então, essa foi a sensação depois de assistir Atravessamentos, do Circo Híbrido. Um vídeo que vai além do registro e consegue estabelecer uma linguagem visual e poética de tanta qualidade e sensibilidade que nos arrebata. Um exercício caprichado com direção de Tainá Borges e Lara Rocho que dá sequência às produções valiosas que o Circo Híbrido vem criando e nos ofertando.

O vídeo espetáculo performance é resultado do projeto Atravessamentos – Residência Artística de Criação e Formação. Uma montagem de arte circense, realizada a partir de uma residência artística com diferentes técnicas, bagagens artísticas, criando produções artísticas inéditas.

A direção de fotografia descobre enquadramentos e ângulos inusitados e que vão desvelando essa vida cheia de pão e circo,às vezes pelas beiradas, pelo avesso, de cabeça pra baixo. As locações podem ser até caseiras e domésticas, mas evidenciam uma cuidadosa escolha assim como é a seleção de elementos, objetos e figurinos. As cores, as texturas, a iluminação articulam cenas revestidas de um imaginário envolvente, inquietante e irreverente. Vamos adentrando um outro universo no embalo de trilhas sonoras que completam essa paisagem artística. Um pé em Federico Fellini outro em Salvador Dali e a bunda sentada em Jaques Tati e Buster Keaton. É tudo adoravelmente estranho e acertado.

Demorei para escrever pois precisei deixar decantar tantas imagens. E quis ver de novo e de novo. Pois é daquelas obras que as imagens não se gastam, nem se esgotam. O gole de xícara cheia de pelos. O homem casca de árvore. O caderno de receitas poéticas na cozinha. O vitral na escadaria que banha de suave tons o performance. O tecido que se prolonga pelo entorno do viaduto no centro da metrópole. A cidade de papel abraçando o espectador. A cena urbana se contorcendo e revelando os malabarismos necessários para seguir fazendo arte, para seguir inventando o viver. Em meio ao pomar ou na beirada de uma lagoa,  a arte se espraia e o circo nos acolhe.

A obra em seus 30 minutos é um exercício audiovisual delicioso e inteligentemente bem elaborado. Em especial os 15 minutos iniciais em que as imagens dispensam as palavras e os textos e se afirmam no picadeiro. Há uma rigor técnico aliado a uma sutil e gratificante humanidade, até quando as criaturas perdem a identidade possível. Quando o texto aparece é trivial e confessional, o que nos aproxima mais desses artistas-personagens. Em certo momento se repete a possibilidade: “ao invés de dinheiro, os bolsos cheios de gentileza”. Hoje arrumei minha mochila, deixei um bilhete em cima da mesa e fui com essa maravilhosa gente do circo.

Elenco: Tainá Borges, Luís Cocolichio, Lara Rocho e Maílson Fantinel (Porto Alegre), Agatha Andriola (Viamão), Guilherme Capaverde (São Lourenço do Sul), Eduardo Corrêa (Canela), Paulo Stümer (Novo Hamburgo)

Direção geral: Tainá Borges e Lara Rocho

Audiovisual: Sal Fotografia

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