frágil: sobre a fissuras e potências no corpo que dança

O corpo que se dedica à dança como profissão boa parte das vezes é colocado frente ao dilema de corresponder a padrões normalmente associados a que poder realizar proezas fruto de um treinamento de alta performance. Mas e aquela pessoa ali, que dança, precisa ficar à mercê dessas expectativas a qualquer preço? Onde fica o espaço individual e singular de cada intérprete nesse processo?  O espetáculo de dança “Frágil, ou, essa dança é 30 minutos mais longa do que poderia ser para competir”, solo da artista Letícia Souza, toca nessas e outras questões que estão intrinsecamente ainda em pauta na cena da dança como a técnica, a virtuose, o apelo do público e o lugar do/a intérprete no processo de criação. E se alguém tem alguma dúvida, o título se complementa com uma provocação: quais são os limites impostos à arte de quem dança.

A obra tem muitos acertos e por isso sua importância de estar na programão do 30º Festival Porto Alegre em Cena. Na abertura já temos a plasticidade da figura envolta em uma amontoado de tule branco, típicos das saias da bailarinas clássicas romântica. Só que não temos o efeitos original desse traje, chamado de tutu, que tinha o objetivo de criar a ilusão de um corpo que flana pelo espaço, vencendo a gravidade. Aqui temos a bailarina dentro desse volume que esconde boa parte do seu corpo e movimento e que se adensa ao seu redor. Contudo ainda persiste ali uma suavidade de quem parece poder embalar finalmente seus sonhos e encontrar outros imaginários para sua dança. E isso envolto numa sonoridade dissonante, ruidosa, nada melódica. Está anunciado o descompasso dessa frágil dança.

Dali pra frente tudo se revira e vai remendando seus fragmentos, rasgados, dilacerados, mal cozidos, artificialmente organizados. Temos um manifesto que encontra inclusive sua própria forma a idiomática, numa língua de um corpo que rosna, murmura, grune e tenta articular algum vocabulário de alguma dança. O humor encontra sua medida nesse contraponto do esteriótipo da bailarina delicada com a reação furiosa e grotesca, capaz de destruir todos os parâmetros ao seu redor para se manter ali, de alguma forma plena e íntegra.

E daí que é bacana, porque o que seria fragilidade, se coloca como potência e encontra sua expressão, sem libreto bem comportado como nas obras de repertório. Letícia puxa seu próprio tapete, no caso o linóleo. Ela acaba com o que dá base às danças que se impõem acima de quem pode fazer a dança acontecer. E é nessa deliciosa hecatombe apocalíptica autofágica, que se abre o espaço do sorriso, da respiração, da possibilidade, da potência e a arte agradece, sem reverências protocolares, pois nesse final se anuncia todos os necessários recomeços.

Escrevo esse texto e me dou conta que faltam poucos minutos para mais uma apresentação. O tempo da arte é esse tempo da reinvenção, do recomeço e da invenção, por isso sempre frágil, precário e fascinante.

Ficha Técnica 

Uma dança de Letícia Souza Com direção de Anderson do Carmo Iluminação: Flávio Andrade Trilha Sonora: Dimi Camorlinga Figurinos: Karin Serafin Cenografia: Marcelo Mello Design Gráfico: Rodrigo Ascenção Fotos: Rodrigo Arsego Produção Executiva: Paula Gotelip

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