O esforço para ver-se (e ser visto)

Na definição do dicionário, translúcido é o adjetivo que diz-se dos corpos que deixam passar a luz, mas através dos quais não se enxergam os objetos com nitidez. E, portanto, o título do solo da bailarina e coreógrafa Marilice Bastos, apresentado na Sala Álvaro Moreyra, traduz de maneira corrosiva sua pretensão a de revelar-se para o público e para si mesma.

Talvez para entender Translúcido, esforço seja a senha que ajude entender a obra. O esforço de um corpo por se fazer visível, de enxergar-se a si mesmo, de mobilizar solitariamente todo um aparato de produção cênica para se colocar em frente à plateia. E assim está em cena, num exercício solo de se dar a ver para tecer sua existência, cheia de contradições e fragilidades mesmo com toda força física e técnica que intérprete revela. E nesse sentido o espetáculo é de uma força, de uma coragem e de uma honestidade que driblam mesmo uma dramaturgia por vezes confusa, pois ainda em gestação à nossa frente. E o que temos é um tour de force de uma excelente intérprete encarando o desafio de criar em sua cidade num país chamado Brasil.

Marilice não integra uma companhia de dança ou um coletivo. Ela se lança no desafio de construir seu espetáculo como intérprete, coreógrafa e produtora, o que nos tempos atuais já é uma façanha e tanto (ao mesmo tempo que mantém com bravura o espaço DCDA) . E o que se vê em cena é um exercício de um corpo cheio de maturidade artística que dança seus conflitos. Um corpo exuberante, que domina uma série de recursos técnicos e habilidades corporais e que se vê em constantes emboscadas. Vemos  um corpo que carrega um requinte técnico que mescla balé, técnica moderna de Graham, ioga, artes marciais, borrados por uma dramaticidade excessiva. O que faz lembrar o que a francesa Laurence Louppe tece sobre os corpos híbridos da cena contemporânea capazes de “dar vida a corpos conscientes”, mas também criar “uma ambivalência, na qual o corpo roça sua própria ruína”.

E não é à tona que o cenário é de um mobiliário sucateado e desajustado. Um sofá com forro puído. Cadeiras quebradas e amontoadas junto de uma pia.Janelas e gaiolas metálicas espalhadas. Um pequeno apocalipse doméstico. Tudo em desuso ou aprisionante. Grades que protegem e impedem a plena liberdade. Tudo que está ali é familiar sem dar conta de permitir que essa figura feminina se expresse plenamente, mesmo quando parece tentar só dançar ao som de uma Gymnopédie,  de Eric Satie, um dos momentos mais contundentes da obra.

Os olhos são um incômodo pessoal para a bailarina em cena, mas necessário para que nós possamos compartilhar do drama que somos convidados a assistir. E as imagens externas são projetadas no lençol amarrotado, no assento do sofá ou no próprio corpo da bailarina. Um exercício corajoso de uma artista que na sua maturidade física e dançante permite-se apresentar o que não se revela com tanta clareza e que também aflige. E nesse sentido, Marilice não se esconde atrás de nenhum véu translúcido. Se expõe nua e crua, sem conforto nem segurança pra nesse movimento talvez começar a encontrar sua (im) perfeita tradução.

fotos:  Giulia Stello

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