Ainda essa tal de dança contemporânea?

Em 2005 publiquei um texto no qual tentava tratar do entendimento da dança contemporânea, originalmente na extinta Revista Aplauso (nº 70), a convite do jornalsita Daniel Feix. O texto foi partilhado no ano seguinte no site idança.net (http://beta.idanca.net/esta-tal-de-danca-contemporanea/). E de lá pra cá foram mais uma centena de comentários, partilhas, retorno de professores universitários e aluno/as que trabalharam com ele em sala de aula, enfim um bocado de diálogos e reflexões que ele promoveu e despertou. Passados 15 anos sinto a necessidade de seguir dialogando com as questões que a dança contemporânea nos coloca. E de redimensionar o texto original. Até porque assim é o pensamento, continuamente se fazendo, desfazendo, refazendo. O pensamento não fica lá parado, estático, reinando absoluto pra sempre, porque nos tranquilizou momentaneamente.

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Então, essa é a questão que gostaria de retomar. Como a dança contemporânea não se contenta com uma definição tranquila e perene, toda dança que se proponha a dialogar com seu tempo, pode se designar contemporânea ou não? O que tem me interessado cada vez menos é saber se uma dança é ou deixa de ser contemporânea, mas sim se essa(s) dança(s) tem um modo contemporâneo de pensar/fazer/sentir/atuar/mover. Nesse sentido, me interessam as danças que estão atentas às condições do seu tempo. E o tempo contemporâneo, não é o neolítico, nem o medieval, nem o moderno (ainda que algumas danças de hoje prefiram se alinhar a essas outras temporalidades). As questões do balé da corte não incluíam uma enormidade de saberes e perspectivas que a última meia dúzia de séculos vem nos colocando e que vem se modificando com uma velocidade nunca experimentada.

Questões sociais, econômicas, culturais e políticas nos colocam em outro lugar quer a gente queira/goste ou não. Não nos alimentamos mais das mesmas coisas, não respiramos o mesmo ar, não nos relacionamos do mesmo jeito, não adoecemos apenas daqueles males, não nos medicamos das mesmas fórmulas, não nos movemos na mesma velocidade, não nos comunicamos com o mesmo alcance. São muitas as condições que nos impõem outros modos de existência. Podemos até manter a nostalgia e achar que até era melhor numa outra época, mas essa outra época não é a nossa. Então me interessa esse modo de estar e ser, com esse tempo, estar e ser contemporâneo. Isso me interessa.

E não é fácil tirar as camadas de tempo que vão se sedimentando na gente e na própria dança. Só não adianta acreditar que o tempo não segue e negar as mudanças, forjando um tempo artificial.

Quais condições seriam essas? Muitas, e por isso não tenho pretensão alguma de esgotá-las, mas apenas e modestamente de indicar algumas que me desafiaram e desafiam. A profusão de informações, a aceleração das rotinas, o encurtamento das distâncias e distanciamento progressivo entre as pessoas, os grandes avanços da tecnologia e a penúria humana do planeta, ampliação da visibilidade de minorias e a reconhecimento dos seus direitos, a diversidade cultural escandalosamente evidente, a inabilidade e temor de lidar com toda essa diversidade, conquistas democráticas e escalada de fundamentalismos, celebração do empreendedorismo, doença do humor, cura do que matava, violência de onde não brotava, novas éticas dos afetos e do social. Tensões, complexidades, recuos, avanços, inclusão, censura.

Uma dança contemporânea, pra mim, é aquela que não se furta de incluir essas questões não apenas na temática do seu espetáculo do ano, mas que faz essas questões redimensionarem os modos de ensino, de criação, de convivência, de organização, de produção entre quem se dedica à dança. E, assim, é contemporâneo muito do que se faz no tap dance, na dança tribal, nas danças urbanas, no flamenco e mesmo no balé, nas danças folclóricas, ou seja que dança for. Já vi muita dança dita contemporânea forjada em contornos medievais ou absolutistas e já vi danças populares e urbanas que celebram a diversidade de gêneros, de gerações e de classes como nenhuma outra.

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E com isso não desejo nem espero que todo mundo deva parar de fazer a dança do tempo que quiser. Mas prefiro e acho urgente e necessário que ganhe espaço e amplitude a perspectiva contemporânea que mesmo que pareça utópica proponha modos mais éticos de se dançar, ensinar e aprender dança, de ser apreciar dança e isso só pode ser produzido ao se olhar ao redor desse nosso tempo e perceber o que eles nos solicita. Dançar bonito pra mim não é dançar o melhor passo, mas o passo que possa fazer essa nossa existência mais humana.

Referências impublicáveis:

TOMAZZONI, Cleci. Meu filho dança o quê? Edição Caseira. 1998.

PALUDO, Luciana; TOMAZZONI, Airton. Prosas necessárias, suaves e insistentes. (2003-2020). No prelo.

PACHECO, Marcelo. A vida é pra se viver: saberes rente ao chão e outras despretensiosas lições. 2006.

Diálogos com quem não dança. Vários autores. Mimeografado. s/data.

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7 comentários sobre “Ainda essa tal de dança contemporânea?

  1. Acho que é isso: a dança é um reflexo da sociedade e vice-versa; é uma retroalimentação; uma construção e desconstrução constante. A dança é uma arte/linguagem capaz de gritar o que tem sido calado, ignorado e excluído; por isso é tão política. E sigo no pensamento utópico de que a dança bonita é a dança que humaniza, aflora, potencializa! E utopias são verdades prematuras, então, quem sabe um dia, não vem um terceiro texto sobre “essa tal de dança contemporânea”!!

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  2. ‘o que há algum tempo era novo, jovem, hoje é antigo / e precisamos todos rejuvenescer’. Lembrei dessa música depois de ler o texto, pensando nessa atualização inevitável que o tempo faz com as coisas. E se pode parecer por vezes repetitivo nos relembrarmos de novo e de novo da impermanência das coisas, também é impressionante o quando conseguimos nos esquecer disso, nos distrair. Eu extrapolo a dança contemporânea pra arte contemporânea no geral, com todos os seus braços, e compartilho da vontade expressa no texto de que essa arte se esforce em conter no seu fazer e expressar as características do nosso tempo, as tristezas, as alegrias e talvez principalmente as contradições, as tensões. Suponho que cada tempo peça algo diferente de seus artistas contemporâneos. E acredito que o nosso tempo, tão marcado pelo embrutecimento, nos pede uma arte que seja sensível. Embora pra isso seja preciso coragem. Então talvez nos peça coragem pra sermos sensíveis.

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  3. Me sinto muito feliz. Me traz um alívio gigantesco ver o conceito de “contemporâneo” sendo qualificado de forma tão pragmática…

    É assim que idealizo a maneira com que quero construir meu estudo do tai chi, minha prática pessoal de auto aperfeiçoamento. Este texto me trouxe uma senso de legitimidade em relação à forma como eu organizo as minhas prioridades e parâmetros: O objetivo, que é prático e filosófico, é imprimir algo real no tempo presente. Como é numa dança, numa peça, ou numa situação de combate ou conflito. No tempo presente tem a ver com sua presença no mundo, na comunidade de pessoas, na nossa vida, no nosso pensamento.

    Em sua origem, o tai chi foi isso. Era um método para pessoas se defenderem em um período violento. Era uma forma de fortalecer o corpo, de aprender como utiliza-lo da forma mais econômica e eficiente possível, sem precisar exercer ou possuir muita força. Mas hoje fica um pouco mais difícil visualizar qual lugar ocuparia um “tai chi contemporâneo”. Eu não sei responder, mas acho quero construir essas resposta com outras pessoas, alunos, colegas, amigos. Seja o que isso significar, mas que seja uma prática que auxilie as pessoas a se conectarem com a sua realidade imedita, com seu movimento cotidiano, com os sentimentos do corpo, com as sensações da vida, agora.

    Já me sinto aprendendo muito com a dança, a esse respeito. Obrigado! ❤

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  4. Pois é! “Essa tal Dança Contemporânea” que passa por um processo contínuo de trocas de experiência com o outro e que, a cada momento, nos surpreende, é a mesma que nos desafia a construção de um conceito.

    Nessa perspectiva, acredito que ter o mínimo de consciência do que pode ser dança contemporânea é essencial para quem está envolvido com dança. Neste sentido, Tomazzoni nos alerta que a dança contemporânea ainda não se solidificou para o público, quanto mais se criou um conceito que servisse de referência. É importante destacar, então, que o corpo na dança contemporânea desencadeia múltiplas temporalidades e significados, revelando estados da alma, de configuração de tempo\espaço, dando vida ao novo. Encontrando-se diante de um sistema complexo, abstrato carregado de surpresas a ser administrado por um corpo que, ao perceber um ruído, auto-reorganiza-se, processando postura e motricidade inéditas. “Essa tal Dança Contemporânea”,portanto, exige da bailarina (o) intérprete interesse sensível no ato da incorporação de um gesto em curso, levando em consideração que, apesar do trabalho em dança ser coevolutivo, temos que considerar que cada um de nós traz consigo sua singularidade, anscestralidade, história, cultura. Conforme Tomazzzoni, “A dança contemporânea evidencia escolhas estéticas que revelam posturas éticas”. Assim, penso que a ética é um divisor de águas para conceituar dança contemporânea, pois advém dela a postura diante do humano, do singular, do sensível, da alma que estarão imbricados no processo de criação em dança.

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  5. Acredito que a dança, e outras artes num geral, não devem ser entendidas como descoladas do tempo em que são praticadas, mesmo aquelas que se propõem a carregar tradições de outros tempos. Afinal, os corpos que dançam são tanto produtos quanto produtores do tempo atual, que é o contemporâneo. Nesse sentido, podemos visualizar o aspecto político da dança contemporânea, por ser capaz de dar voz às minorias, ocupar locais que a princípio servem só pra passagem, e principalmente por sensibilizar e humanizar tanto quem dança quanto quem assiste.
    Pode parecer difícil definir o que é dança contemporânea e o que não é, e muitas vezes definições engessam, mas conceituá-la como uma arte que dialoga com seu tempo , por mais amplo que isso seja, permite justamente uma constante atualização em sincronia com os novos desafios, hábitos, e formas de se viver o tempo presente.

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  6. Eu acredito na dança como uma fluidez de tempo e espaço. Não é algo cristalizado, pois é interessante acompanhar o tempo, mas será que é necessário ser contemporânea em sua forma de expressão? Ainda aberta para ressignificar o que digo, penso que a dança precisa ter o “sentimento que faça sentido”. É a arte de expressar o presente, passado, futuro sem julgamento e no flow… Penso que pode ser uma escolha, um ” mood “do artista. A partir do momento que dançar significa comunicar com a alma, o discurso é individual, a comunicação é subjetiva livre, talvez respeitando algumas questões estéticas e/ou coletivas, mas é um sentimento que através da palavra corporal é transmitido.

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  7. Após a leitura do texto, comecei a refletir o porquê da dança contemporânea não ser tão conhecida e “valorizada” (coloco entre aspas pois sabemos que na realidade nenhuma dança é valorizada no nosso país) quanto as outras modalidades. Eu mesma que danço desde sempre, me identifiquei com a ignorância da pessoa do começo do primeiro texto “Essa tal de dança contemporânea”. Considerei então o óbvio: as pessoas tem medo da dança contemporânea.
    “a dança contemporânea não se contenta com uma definição tranquila e perene”, isso que a diferencia dos outros tipos de dança. A nossa sociedade se assusta com o revolucionário, o ousado e o diferente.
    Essa reflexão me remete a um dos meus trechos favoritos da música “Como Nossos Pais”, da Elis Regina:

    “É você que ama o passado
    E que não vê
    Que o novo sempre vem”

    Esse trecho continua sendo o reflexo perfeito da sociedade em que vivemos, a mesma sociedade que escolhe ignorar a dança contemporânea.

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