O meio intelectual ainda suspeita dos que dançam? Por quê?

imagem do espetáculo “e se nos calam”, de Driko Oliveira/cia jovem de dança de Porto Alegre


Pensa rapidamente. Num seminário para discutir a cultura contemporânea você encontra algum escritor/a? Provavelmente. E algum bailarino/a ou coreógrafo/a? Provavelmente não. Num debate sobre questões políticas e sociais você costuma ver a participação de algum escritor/a? Algumas ou muitas vezes sim. E algum bailarino/a ou coreógrafo/a?. Provavelmente nunca. Então vamos seguir e pensar quando o debate é sobre o racismo. Algum escritor, filósofo/a, músico/a, ator/atriz? Sim. Algum coreógrafo/a ou bailarino/a? Às vezes, ou raramente. Começo assim com indagações que tenho me feito e feito a alguns colegas, pois tenho recorrentemente me perguntado onde está a dança nos grandes debates nacionais ou mesmo locais? E por que é tão natural a participação de algumas áreas e a ausência contante de outras, no caso a da Dança, mas poderia facilmente incluir a do circo. Talvez aqui nesse breve texto não consiga chegar tão próximo como gostaria de tudo que envolve essa intrincada questão, mas de lançar essa problemática, que pode ser mais ampla, mas que levanto a partir de uma perspectiva local, de quem atua há algumas décadas na cena cultural de Porto Alegre.

Talvez um dos pontos centrais seja que ainda se perpetue a ideia de que a dança se preocupa com um corpo tão expressivo, mas não na mesma proporção identificam que possa haver na dança um corpo reflexivo, propositivo, complexo, desafiador nas tramas do saber e do pensar. A dicotomia ocidental de corpo/mente ainda assombra no século XXI. O corpo que dança parece restrito à performance e exibição e não à formulação de outra ordem. Um corpo que requebra e se contorce e pula e gira parece ser um corpo condenado a ter pouco a dizer e a pouco elaborar no mundo do intelecto tradicional estabelecido.

E quantas vezes no meio acadêmica senti ou ouvi relatos de outros colegas da dança de um estranhamento como nossa participação em bancas ou mesa de debates. Uma vez, depois de citar um teórico do momento, me relataram surpresa de ver que “vocês da dança” também trabalham com esse autor. Ou então quando, na opção de falar do corpo que dança pela experiência em si, sem nenhum autor do momento, receber um olhar de desdém ou olhinhos revirados.

Pensar o mundo parece uma tarefa a qual a dança tem menor contribuição. E na atuação pública na área da cultura me deparei inúmeras vezes com esse preconceito e infelizmente ainda me deparo. Tanto é que levou anos para a dança ter um mesmo espaço na organização administrativa da secretaria municipal da cultura e tantos anos se levou para que o curso de dança pudesse surgir na UFRGS. Enfim, se essa demora pode ajudar a entender essa problemática em nada justifica a continuada ausência da dança de um circuito cultural “pensante”.

E um evento local é facilmente um exemplo disso. O Fronteiras do Pensamento em suas inúmeras edições, desde 2006, NUNCA contou com alguém da área da dança para pensar junto no seu rol de conferencistas. Escritores? sim. Cineastas? sim. Dramaturgos? sim. Poetas? sim. Escultor? sim. Críticas de arte (plásticas)? sim. Músico? sim. E aqui não é uma crítica direcionada ao evento, pois parece apenas ser uma consequência naturalizada de desconsiderar a dança quando os assuntos são “sérios”. Inúmeros fóruns debates, seminários, circuitos, conferências locais ainda negligenciam a participação de representantes da dança para a construção de pensar a cidade, a educação, o futuro, a política, a cultura.

Se o problema é valorizar o produto de importação poderíamos sugerir nomes como Anne Teresa De Keersmaeker., Jerome Bel, Maguy Marin, Yvone Rayner, Trisha Brown, Steve Paxton, Anna Halprin, Alain Platel, Lloyd Newson. Se a gente quiser olhar a matéria prima nacional, que tal Lia Rodrigues, Thereza Rocha, Helena Katz, Marcelo Gabriel, Suely Machado, Cassia Navas, Lu Coccaro, Rosa Primo, Lu Paludo, Marcelo Evelin, Andrea Bardawil, Wagner Swartz, Rui Moreira, Angel Vianna, Eva Schul, Paulo Emilio Azevedo, Monica Dantas, Manoel Timbaí, Fernanda Boff, Jorge Alencar, Suzy Weber, Gerson Moreno, Isabel Marques, Katia Salib, Debora Leal, Maria Falkembach, Marcio Canabarro, Claudia Muller, Alexandra Dias, Iara Deodoro, Beatriz Cerbino, Brysa Mahaila, Alejandro Ahmed, Uxa Xavier, Silvia Canarim, Leonel Brum, Tati Missel, Neto Machado, Carlota Albuquerque, Wagner Ferraz, Diego Estevez, Marlise MAchado, Clovis Rocha, Gustavo Duarte, Carmen Hoffmann, Renato Cruz, Sigrid Nora, Perla Santos e outros tantos que ocupariam uma boa página aqui e desculpem se não nominados nesse momento por lapso da memória e de tempo. Aposto que as contribuições seriam surpreendentes e bem-vindas.

Dia desses pensando uma programação de conferências para a Semana da Consciência Negra a lista de novo era toda de escritores e jornalistas. Sugeri o nome de uma coreógrafa local. O silêncio perdurou. Ninguém a conhecia, mesmo que tivesse recebido um importante prêmio nacional contra o racismo.. Ninguém sabia do seu trabalho e mesmo expondo de maneira sintética nenhum interesse maior foi despertado. E tudo seguiu como antes.

Desconsiderados ou sequer (re)conhecidos? Arrisco que provavelmente desconhecidos ou ainda se algum nome já foi ouvido e registrado possivelmente nem saibam minimamente do potencial artístico, social, filosófico, educacional, político de suas obras e de suas produções e fazeres. E um certo constrangimento de admitir ou lidar com isso.

Tímidos ou intimidados? Também há de se considerar esse aspecto, afinal muitos da área da dança nesse processo de exclusão (e aqui me incluo) talvez tenham introjetado que esse lugar de fala e pensamento não os pertence ou que não é legítimo pleitear esse espaço. E também uma possível inferiorização com medo de fracasso, como se nenhum palestrante e conferencista de outras áreas tenha em algum momento nos entediado ou pronunciado um discurso frágil e inconsistente.

Que alguns podem não ter o dom da oratória? Pode ser. Que alguns não são tão hábeis fabuladores e não lidam tão bem com as palavras, também tem uma parcela disso. Mas e não haveria um bom bocado de falta de disposição de pensar em outras lógicas do pensar? Haveria resistência a tentar entender por outras vias, com base em outros paradigmas? Esses dias uma aluno me perguntou se haveria segregação intelectual? Boa pergunta.

Há de considerar também que muito/as nem queriam estar/ocupar esse espaço/lugar de fala que precisa da palavra e do verbo para propor, afetar, transformar, pensar. E isso é legítimo e merece talvez um outro texto. Mas há muito/as artistas da dança que movimentam pensamentos com tanta excelência. Então, que medo será esse de um saber e pensar que se faz no corpo?

Em tempos de tantas ações afirmativas, reparações, resgates necessários na nossa sociedade tenho a esperança de que essa realidade ir se transformando. Quem sabe considerar em para uma próxima ação incluir alguém da dança. Chama a dança aí, vai. E já tem gente aí acolhendo a dança com respeito e interesse legítimo, mas são pontuais ainda, valiosos, mas pontuais.

Quem sabe seja hora dos pensamentos e saberes rodopiarem para sair do lugar e poder apontar outros necessários arranjos e direções. Então aqui já fica uma dica para quem não sabe por onde começar: o bacanérrimo Dança, o enigma do movimento, na sua segunda edição, revista e ampliada, de Monica Dantas, em breve resenha aqui no Cenat TXT.

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