
Coisa que sempre me fascinou no mito grego de Dionísio foi seu aspecto divino que não era algo inacessível, e nos rituais com música, dança e uma boa cota de alguma bebida alcoólica, no caso o vinho, podia sentir-se tão poderoso quanto o próprio deus. Por isso não à toa seu vínculo com a celebração criativa das artes da cena e a toda ordem de festejos profanos, considerados perigosos e subversivos. Ao assistir à montagem Trago Sorte Mentira & Morte, do Grupo Cerco é essa salutar e bem vinda embriaguez que nos conduz e entorpece no melhor que isso possa significar. Um arrebatamento que não nos furta do riso, da euforia, do prazer, da empolgação, da crítica política, da poesia, do protesto, da denúncia, do devaneio. E tudo assim em festa, sem ser panfletário nem didático, mas celebrativo. Apenas nos convidando e partilhando essa experiência de voltar a acreditar que podemos e merecemos ser mais e ir além do esperado e devidamente programado e controlado.
O Grupo Cerco tem uma premiada trajetória que começou a nascer lá em 2008 no Departamento de Arte Dramática da UFRGS (e aplausos à universidade pública de qualidade que fomenta a formação de artistas desse calibre) e tem colecionado um repertório premiado e de respeito como Incidente em Antares (2012), Puli-Pulá (2015) e Arena Selvagem (2018). E recentemente passou a manter o valioso espaço da sua sede na Rua Riachuelo. E entre tantos acertos está o de manter um repertório e uma produção viva e pulsante na capital dos gaúcho seja no histórico Teatro de Arena ou no bar Agulha, na nova zona boêmia do Quarto Distrito. E fez isso com ardor destemido e competência que, na noite fria de sábado no Theatro São Pedro, contagiou uma plateia lotada e animada do começo ao fim. Saí de lá pensando que assistir ao Grupo Cerco passa ser uma obrigação para quem é ou passa pela cidade. Que orgulho ter uma produção artística assim em Porto Alegre, capaz de gerar aquele comentário na saída de um casal “são tão bons que nem parecem daqui” e que faz a gente virar e proclamar: “Mas são!!!!”. São artistas locais produzindo arte comprometida com o público, com a cidade, com esse mundo que nos rodeia.
E para tal feito Trago Sorte Mentira & Morte conta com o texto muito bem urdido de Celso Zanini, que encontra o ritmo lúdico e lúcido das palavras. O texto brinca e embala, dá voltas, serpenteia e desvela na boca de personagens que cheios de defeitos e qualidades que amam, que enganam (às vezes com boas intenções, noutras nem tanto), que querem melhorar de vida, que não encontram as devidas oportunidades, que bebem, que sonham, que se divertem, que morrem. Uma trama que acontece em um suspeito bar por onde passam malandros e trapaceiros que acima de tudo só querem se dar bem e vão revelando as contradições de um país que tantas vezes infelizmente celebra social e politicamente tudo aquilo que diz condenar, que constrói mitos, que, ao contrário de Dionísio, só propagam penúria humana.

Além disso, a montagem tem um universo musical de qualidade e inspiração defendida pela banda formada por Frigo Mansan, Gabriela Lery, R. Fernandez e que deslizam pela composição original das Canções de Celso Zanini e Sanatório Rock Blues. Os arranjos são criativos, arrojados e constroem um jogo hábil e fundamental para a dramaturgia das cenas. A preparação vocal e direção musical de Simone Rasslan encontra sintonia num elenco que nada deixa a desejar e surpreende em cada canção. Anildo Böes, Bruno Fernandes, Camila Falcão, Elisa Heidrich, Manoela Wunderlich, Martina Fröhlich e Philipe Philippsen são donos da cena e formam um daqueles elencos que impossibilitam destacar um ou outro, pois atuam, brincam, dançam, cantam juntos e numa ação coletiva que torna todos cativantes e fantasticamente apaixonantes. O sotaque portunhol falsificado do Anildo, a sagacidade expressiva do Bruno, a irreverência poderosa da Martina, as sutilezas espertas da Manoela, os arroubos inesperados da Elisa, a hilaridade camaleônica do Philippe e o carismático deboche da Camila. Tudo vai fazendo uma cena colaborativa e envolvente como dos personagens tão capazes de nos levar na conversa, fazer sentar pra beber um trago e nos fazer cúmplices. Não é uma tarefa usual nem fácil e eles conseguem pois é visível o quanto de trabalho tem um ator e uma atriz para chegar nesse lugar. e que o elenco encontrou a devida orientação.
A direção revela esse trabalho e é dinâmica sem recorrer a maneirismos para animar a cena. Há um inteligente e bem tramado fluxo das cenas. E há a hábil miscelânea antropofágica que devora, processa e ressignifica gêneros, tirando o que podem oferecer de melhor e ainda estabelecendo arranjos e combinações impensados. Do faroeste à farsa, do tom brechtiano aos musicais da Broadway, do circo ao realismo mágico latino-americano-tupiniquim. Tudo chega onde chegou pois parece ter havido a medida certa de condução e espaço para as singularidades e contribuições. É tudo uma planejada orgia, pois no meio desse desgoverno, dessa desorientação, dessa anarquia, dessa bagunça, dessa confusão há uma orquestração. E aqui inevitavelmente me vem o filósofo e grande entendedor da cultura, tanto da erudita quanto da popular, Mikhail Bakhtin que tão bem pontuou aspectos relevantes e valiosos como o da carnavalização, da polifonia e do dialogismo. A direção cria o espaço para esses diálogos, para as muitas vozes que estão em cena e que chegam tão vigorosas até nós.
E como nos ritos dionisíacos, são as mulheres-mênades-bacantes que comandam essa celebração: Inês Marocco, Kalisy Cabeda e Simone Rasslan. E tem o primoroso figurino de Valquiria Cardoso (que bruxas são aquelas!!!). Em cena não é diferente com Martina, Manuela, Camila e Elisa, satânicas irrevetentes, bruxas ameaçadoras, amantes cheias de ardis, meretrizes ingênuas, justiceiras implacáveis, e que não deixam os homens que se acreditam protagonistas proscritos, mas tramam junto com eles para nosso deleite. Tudo é um convite irrecusável e a gente se entrega e vai se embriagando. Para evocar Dionísios e permitir sacrificar a tristeza e a desesperança e nos embriagar de arte e de vida, mil vezes: Evoé! A gente merece e agradece ritos como esse.
Ficha técnica:
Criação coletiva: Grupo Cerco
Direção Cênica: Inês Marocco e Kalisy Cabeda
Direção Musical e Preparação Musical: Simone Rasslan
Dramaturgia: Celso Zanini
Elenco: Anildo Böes, Bruno Fernandes, Camila Falcão, Elisa Heidrich, Manoela Wunderlich,
Martina Fröhlich, Philipe Philippsen
Banda: Frigo Mansan, Gabriela Lery, R. Fernandez
Composição Original das Canções: Celso Zanini e Sanatório Rock Blues
Arranjos: Frigo Mansan, Gabriela Lery, R. Fernandez e Simone Rasslan
Cena Sonora Original: Grupo Cerco e Banda
Desenho de Luz: Ricardo Vivian
Operação de Luz: Ricardo Vivian e Roger Santos
Desenho de Som: Rodrigo Rheinheimer
Cenografia: Rodrigo Shalako
Concepção de Figurinos: Valquíria Cardoso
Confecção de Figurinos e Adereços: Valquíria Cardoso, Alex Limberger e Mari Falcão
Maquiagem: Anildo Böes, Camila Falcão, Manoela Wunderlich e Martina Fröhlich
Preparação Corporal: Anildo Böes e Manoela Wunderlich
Preparação Vocal: Philipe Philippsen e Simone Rasslan
Programação Visual: Marina Kerber
Gestão de Redes Sociais: Elisa Heidrich
Fotos para Divulgação: Adriana Marchiori
Assessoria de Imprensa: Tatiana Csordas
Produção e Gestão: Daniela Lopes / Cardápio Cultural
Apoio: Theatro São Pedro, Grupo Press e Pastel com Borda
Realização: Grupo Cerco
Financiamento: Pró-Cultura RS FAC – Governo do Estado do Rio Grande do Sul
Que delícia de texto!
Fiquei emocionada! 🖤
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Foi simplesmente contagiante, perfeito, harmônico,apaixonante,embriagante, feliz de ter assistido,da vontade de assistir de novo!
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