a matilha sente o cheiro da caça e do que mora dentro da gente

Não podia deixar encerrar o ano sem comentar um espetáculo destaque no ano e que conferi em setembro dentro da programação do Porto Alegre em Cena. Cães, uma produção que veio de Pelotas, com direção de Alexandra Dias. Um trabalho denso que mergulha nas corporeidades masculinas. Corporeidades que dançam e tecem representações plurais e complexas que o tema convoca, ainda mais num contexto regional como o gaúcho onde as interpelações dessa corporeidades inevitavelmente tangenciam esteriótipos, preconceitos, distorções, mitos tradicionalistas e uma cultura machista estabelecida. Por isso tão importante essa montagem que é firme e sensível ao mesmo tempo.

Em cena, temos um elenco formado exclusivamente por dançarinos homens (cis, trans e queer), mas que também incluem corpos negros, corpos gordos, corpos fortes e viris, corpos precários e frágeis, corpos delicados, corpos intimidados, corpos acuados, corpos violentados. É essa matilha que se junta como forma de sobreviver em um ambiente hostil. Isso, sem se eximir dos enfrentamentos, disputas e tensões que a vida em grupo estabelece. E assim que vamos vendo se desenhar as singularidades de cada masculino e o jogo de uma intrincada sociabilidade.

A animalidade evidente no título desenha uma dramaturgia que se consolida na entrega do elenco que não foge das ciladas dessa condição. Selvagerias e racionalidades se misturam e até se confundem num confronto de fisicalidades. A mãe que acaricia é a mão que também bate, atiça, que pode ferir. Os dentes que aparecem no sorriso são os mesmos que mordem e dilaceraram. Cada gesto é um discurso que tenta ganhar relevo. Relevo humano. Relevo bicho. Relevo humano-bicho. Relevo desumano por vezes?

A matilha se identifica e se distingue pelo olfato. O cheiro da carne, o cheiro da intimidade, o cheiro da ameaça, o cheiro da caça. E, afinal, o olfato é nosso sentido mais primitivo. Um sentido estratégico para a sobrevivência animal, mas que é aquele que aciona nossas memórias mais profundas. Nosso sistema límbico, ali, farejando nossas emoções que afloram alertas não só para perseguir a presa a ser caçada, mas também nossos sentimentos que não querem ser mais estraçalhados.

Ficha técnica:

Direção: Alexandra Dias / Dançarinos-criadores: Alêxander Christopher Pereira Garcia, Alliyellow, Denilson Cosseres, Linfout, Jarrão, Gabriel Castilhos / Colaboraram na criação do trabalho: Maurício Ploneals, Manoel Timbaí, Janiel Bitencourt, Ítalo Ribeiro / Preparação corporal: Mestre Jarrão / Dramaturgia: Tatiana Duarte / Trilha sonora original: Christian Benvenuti / Figurino: Ana Mercedes Hernandez / Iluminação: Denilson Cosseres e Alliyellow / Cenário: Alexandra Dias e grupo / Arte gráfica: Tupax Pindoramogràphico / Operação de som: Bianca Ascari / Operação de luz: Moracos / Produção: Moracos e Alexandra Dias / Produção executiva: Jessica Porciúncula e Bianca Ascari / Fotos: Camila Albrecht, Josiane Franken, Maria do Carmo Vieira / Teaser: Takeo Ito / Realização: OUTRO Dances

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