Destaques de um 2023 pra comemorar na dança em Porto Alegre

Mais do que um balanço da cena local da dança em Porto Alegre, acho importante uma possível leitura do contexto do ano de 2023 e um registro desse momento. Afinal foi um ano de uma produção intensa e qualificada na capital num período, um efetiva recuperação depois do período de isolamento e sem o fomento da maioria dos editais e contando especialmente com produções independentes que mobilizaram os palcos da cidade. Espetáculos, performances, encontros, festivais revelaram a diversidade, afirmaram estéticas e corporeidades e acima de tudo reencontram um público que lotou apresentações. O que é de se reconhecer e comemorar.

Uma das marcas de 2023 foi o protagonismo da dança em festivas de artes cênicas como o Sesc Palco Giratório e o Porto Alegre em Cena. O primeiro trouxe marcantes montagens como Encantado, de Lia Rodrigues (RJ); e Iracema, de Rosa Primo (CE). Já o 30º Porto Alegre em Cena, fez uma verdadeira primavera dançante no mês de setembro com obras como Vala Corpos Negros e Sobrevidas”, da Cia Sansacroma (SP); Muximba, do Giradança, (RN) https://txtcena.art.blog/2023/09/08/muximba-o-sentir-para-alem-das-normas-e-padroes/; “Transiterrifluxório”, de Cláudio Lacerda/Dança Amorfa (PE); Frágil ou, essa dança é 30 minutos mais longa do que poderia ser para competir, uma ‘pergunta dançada’ por Letícia Souza (SC); https://txtcena.art.blog/2023/09/16/fragil-sobre-a-fissuras-e-potencias-no-corpo-que-danca/ E não ficaram atrás nesses eventos trabalhos do interior como Cães (Pelotas) e Esporas (Santa Maria) https://txtcena.art.blog/2023/05/20/uma-possivel-trilogia-de-faunos-homens-e-pampa/, além de forte presença da cena local com o Grupo Afrosul Odomodê pela primeira vez na programação e ocupando, depois de quase 50 anos de trajetória, o palco do Theatro São Pedro.

Artistas que marcaram a história da dança gaúcha mostram que estão na ativa e capazes de se recriar e se reinventar se for preciso. A maturidade potente e contagiante do bailarino e coreógrafo Edison Garcia em Pie Jesu ressucita-me resultou em um catártico exercício cênico https://txtcena.art.blog/2023/08/26/ainda-ser-bailarino-aos-65/ .

Outro veterano, o coreógrafo Ivan Motta, com sua Cia H apresentou talvez seu melhor espetáculo: Memórias perdidas. O elenco sempre recheado de intérpretes virtuosos apostou também em bailarinos e bailarinas com décadas de atuação como Alexandre Rittman, Thais Petzhold, Rossana Scorza, Tisi Rangel, Edison Garcia, Rozana Novoa. E o resultado foram comoventes coreografias que traduziam a expressividade de corpos que sabem que carregam uma história e que a técnica está a seu serviço e não ao contrário. E todos entendendo o palco como um espaço aberto e sempre convidativo a um delicioso jogo cênico.

2023 foi o ano de comemoração dos 40 anos do GEDA, com direção de Maria Waleska Van Helden, que reuniu três de seus recentes trabalhos em Memória Encorpadas. Além de marcar a longevidade da Cia, também trouxe em especial a afirmação de Graziela Silveira como uma das bailarinas destaque da temporada. Às Vezes eu Kahlo, permitiu revelar sua interpretação intimista e carregada de força e intensidades.

Mas uma nova leva de criadores e criadoras também mostrou que está disposta a encontrar seu espaço. Dentre essa turma, tivemos a afirmação do Coletivo Grupelho que produziu duas importantes obras: Rinha e Artifícios da virtuose dissidente. O primeiro vencedor do edital da Santa Casa nos presenteou com um solo denso e contundente com Janaína Ferrari, vencedora do Açorianos como intérprete em 2022 e trilha inspiradíssima de Patrícia Nardelli. O segundo espetáculo foi vencedor do edital Re-volta da Dança (parceria do Centro Municipal de Dança e do Goethe Institut Porto Alegre) e de Espetáculo do Ano, no Prêmio Açorianos de Dança. https://txtcena.art.blog/2023/10/20/artificios-da-virtuose-dissidente-a-polifonia-dancante-do-acontecer/

Trivial, um Espetáculo de Bboys com direção e coreografia de Driko Oliveira evidenciou que as danças urbanas estão buscando novas perspectivas artísticas e colocaram em cena um espetáculo denso e com uma dramaturgia inquietante, recheada de situações cotidianas do seu universo. O trabalho realizou várias temporadas e foi a montagem com a maior número de indicações ao Prêmio Açorianos de Dança (espetáculo, coreografia, intérprete destaque – Daniel Cavalheiro, trilha sonora, produtora, elenco e destaque artístico), ganhando por elenco e produção. Além de firmar Driko Oliveira como um dos mais promissores coreógrafos da sua geração, reuniu importantes b-boys como Julinho RC, Salazar, T2, Deaf, Cesinha RC e Jackson Brum.

A produção flamenca seguiu revelando sua força na cena local. Ana Medeiros colocou em cena o seu Sonho ibérico, que lhe rendeu o Prêmio Açorianos de Intérprete do Ano e de Trilha Sonora, trazendo o fado para um saboroso e envolvente diálogo. O Flamenco Del Puerto estreiou Vivir e o Tabalado Andaluz sua Flamencura.

 Nosso Quadril Nossa Voz– a dança do ventre que habita em nós comemorou os 20 anos da companhia e teve coreografia e coordenação geral de Emmeline Azah. Em cena o talento das bailarinas Patricia Brito Veiga (Bahirah Azah), Meiri Satomi Michita (Fareeda Azah), Danielle Luz Garcia (Parvaneh Azah) e Priscila Escobar de Lima (Seher Azah) em coreografias que literalmente deram voz aos corpos femininos com a dança oriental. E há de se destacar o trabalho primoroso e ainda pouco conhecido de Roberta Malheiros na Escola Preparatória de Dança da EMEF Victor Issler, na Vila Mario Quintana, minucioso e cuidadoso produzindo com estudantes ainda jovens resultados surpreendentes.

O jazz perdeu Suzana D´Ávila, criadora e agitadora incansável dessa linguagem em Porto Alegre, mas ocupou as cena da cidade com Ecos, vencedor de coreografia no Prêmio Açorianos (Suzana e Pamela Agostini) e intérprete a Bruno Manganelli. O espetáculo é também um tributo histórico, pois revisita a montagem da década de 1990 e a atualiza com competência e vigor dançante.

A produção de tap dance que vinha se mostrando tímida trouxe Engrenagem, da Cia de Dança Karin Ruschel, uma obra inédita com direção de Gabriella Castro e participação especial e luxuosa de Fernanda Santos. A partir de imagens e sonoridades, a pesquisa de movimento para este trabalho explora o funcionamento das máquinas.
O CFI os Gaúchos esteve no Palco do CIEE para festejar os 64 anos de sua história. Enquanto o Andanças, de Clóvis rocha e Cláudia Dutra, levou um poucos das danças folclóricas brasileiras à Itália.

O balé teve presença marcante no Festival Internacional de Dança, o FID POA, e no Sul em Dança, revelando talentos de escolas como Ballet Vera Bublitz e Ballet Lenita Ruschel. O Ballet Aline Rosa retornou das cinzas depois de um incêndio em sua sede e termina o ano recebendo o prêmio TOP OF MIND QUALIDADE BRASIL 2023 como empreendedor de referência. O Ballet da Ufrgs estreou Tato: todo contato deixa uma marca, de Mark Adriano. E encerrou o ano com chave de ouro com a temporada de Noite de Walpurguis, com Ballet Concerto apresentando no primeiro ato o Pas de Deux de ballets renomados como “La Bayadère”, “Raymonda”, “Lago dos Cisnes”, “Águas Primaveris” e “Coppélia” e no segundo ato, a remontagem de “Noite de Walpurgis”, uma suíte da ópera “Fausto” de Charles Gounod. Direção de Victoriz Milanez. Além de termos pela primeira vez na cidade uma apresentação do Les Ballets Trokadero de Monte Carlo, numa produção da OPUS, no Teatro do Bourbon Country.

A Cia Municipal de Dança retomou seu trabalho com novos integrantes e passando a contar com parceria com o Instituto Afrosul Odomodê. Na sua nova fase iniciou o projeto Educacena, levando mensalmente espetáculos, oficinas e debates para escolas públicas da periferia, e fazendo parceria com Orquestra Sphaera Mundi e Carlota Albuquerque no sucesso de público no Theatro São Pedro com O rapto de Perséfone, que confirmou o potencial de intérpretes como Marina Sachet e Leonardo Maia, que protagonizaram a montagem. Também retomou obras de sucesso no seu repertório com a temporada de Scanner e Brazil Beijo e teve o primeiro trabalho assinado por uma coreógrafa negra, Área Suspensa, da paulista Gal Martins, que teve estreia em dezembro no Teatro Renascença.

O ano foi marcado ainda por intérpretes se afirmando como criadores. Igor Pretto trouxe a requintada montagem de Réquiem https://txtcena.art.blog/2023/12/11/requiem-ou-a-danca-que-recusa-o-fim/. Paula Finn apresentou um contundente e poético espetáculo Cartas honestas para danças duras https://txtcena.art.blog/2023/12/08/dancas-correspondid. Mauricio Miranda estreou Rede, da Cia Plural com um elenco recheado de excelentes intérpretes e com o irreverente exercício de Maurício e Pedro Coelho dançando histórias contadas pela plateia.

E teve dança aérea com o provocante e sempre competentíssimo trabalho da trupe do Circo Híbrido com o seu Não espetáculo! E uma animada montagem infantil de Alice no país das maravilhas com o projeto Pequenices, de Fernanda Boff.

Experimentos e performances arriscando procedimentos e modos de feitura também tiveram forte presença em 2023. Tivemos as Suculentas, de Camila Vergara, o Laboratório de dança, de Isadora Franco; as degustações do Mímese, coordenado pela professora Luciana Paludo (Ufrgs); a Cia Arca , de Rodrigo Scherer; Cia Gema, da Dani Cezar; a Cia Culva, de Leonardo Silva e Jou Cunha; a Uthopia Cia Danças, da Jade Correa e do Matheus Almeida; o Coletivo Ethos, alunos e ex-alunos do Instituto Federal Rio Grande do Sul-Campus Restinga. Tivemos a montagem de Aliens com a galera da Macarenando Dance Concept e a criação cênica do espetáculo Cidade Bambu que faz parte das atividades desenvolvidas no projeto de extensão Permaculturar Dançante (ESEFID-UFRGS) com direção e concepção cênica: Carla Vendramin. Vimos a retomada de as ações do Coletivo Moebius e a produção da 17ª turma do Grupo Experimental de Dança, o GED com o espetáculo o que eu encontro quando venho te encontrar, com direção de Georgia Macedo, Camila Vergara e Douglas Jung.

Gordança, uma palestra dança foi outra deliciosa surpresa. Inteligente, bem humorada e posicionada montagem que trata ainda sobre os padrões corporais estéticos para quem dança, especialmente balé. Rimos, choramos, nos revoltamos e nos irmanamos com Renata nessa encenação resultado da pesquisa da tese de doutorado da atriz e bailarina, com orientação da professora Patrícia Fagundes.

1ª Mostra de Danças Afro-Brasileiras de Porto Alegre foi realizada dia 10 de agosto do Teatro Renascença reunindo 11 grupos e artistas como Brazil Estrangeiro, Quilombo Família do Ouro, Perla Santos e Tiago Cunha entre outros. O evento marcou a programação em comemoração ao Dia da Dança Afro-brasileira comemorado na capital dia 18 de agosto.

Sapateando sem fronteiras foi um projeto diferenciado com produção impecável de Marlise Machado e muito bacana que buscou a qualificação, produção e difusão artística em 4 linguagens do sapateado: flamenco, tap, malambo e chula. Juliana Prestes, Leo Dias, Valentin Cruz e Marcelo Veri ministraram aulas e participaram juntos de uma inédita performance no Teatro da Hebraica que contou com participação dos músicos Giovani Capelletti, Gustavo Rosa, Pedro Borghetti e Renato Muller.

O projeto Dança Comunidade ocupou as manhãs de segunda feira no Centro Municipal de Cultura com as danças circulares sob orientação da bailarina e professora Patrícia Preiss. Um espaço que ganhava participantes a cada semana ultrapassando 70 alunos e alunas por encontro, especialmente os de 60+. Um pequeno documentário traduz o importância para esse público e dessa modalidade tão democrática e integrativa: https://youtu.be/q2pqca2QJko

Uma nova geração com disposição e talento de jovens bailarinos e bailarinas como Cris Soros, Andi Goldenberg, João Ott, Letícia Alcântara, Duda Tomé, Mariana Morais, Roberto Waichel, Mariana Polônia ou do coreógrafo Daniel Santo, da ONG Renascer, da Restinga. Também tivemos a retomada da Escolas Preparatórias de Dança, as EPDs, e suas Cias Jovens vinculadas à Cia Municipal de Dança que levam aulas gratuitas a escolas municipais de 5 bairros da periferia da capital. Pudemos ver na mostra de trabalho de final de ano o incrível resultado de professoras da rede municipal como Bel Willadino, Helena Paz, Fernanda Santos, Neca Machado e Roberta Malheiros, Débora Leal e de oficineiros como Matheus Almeida e Gabriela Castro. Mas foi especial ver que ex-alunos e alunas do projeto agora passam a atuar como professores e professoras, como profissionais.

E teve uma publicação bacanérrica: Minha dança não é só passos, da bailarina e professora Mara Nunes. https://txtcena.art.blog/2023/07/21/minha-danca-e-tudo-que-ela-quer-e-pode-ser/ E o Quilombo Família de Ouro recebeu dois Prêmio Açorianos, de Personalidade do Ano a Mãe Paty e Projeto por Nossas Origens. E o coletivo Múltiplos Dança começou suas atividades regulares e promoveu um lindo evento de dança inclusiva no Teatro Renascença. E a coreógrafa Carlota Albuquerque recebeu a merecida homenagem com o Troféu Eva Sopher.

A produção foi tanta que foi impossível acompanhar tudo aqui no Cena Txt ao longo do ano ou mesmo registrar muitas ações e produções. E essa dificuldade também traduz muito do que o segmento da dança vem produzindo e afirmando na cena de Porto Alegre. Não foi pouca coisa, o que só reafirma a importância do reconhecimento do segmento e dos investimentos públicos e privados que podem e merecem ser cada ano maiores. Evoé e que venha 2024 no mesmo compasso, ou melhor, num compasso melhor ainda.

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